- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas da 1ª temporada e demais episódios e, aqui, de todos os quadrinhos.
– Ei, Profundo.
– O que?
– Come o Timothy, porra.
Minha intenção original era escrever uma crítica para cada episódio deste começo de The Boys, como costumo fazer em situações semelhantes. Cheguei até mesmo a escrever a crítica de Payback sem assistir ao seguinte, mas, quando fui conferir The Only Man In The Sky notei algo que me deixou impressionado e que foi confirmado por Barbary Coast: a série capitaneada por Eric Kripke parece ter alcançado outro nível. E não, não falo em outro nível de violência ou de perversão apenas, pois isso é mais do que esperado para a proposta original de Garth Ennis, mas sim outro nível de qualidade geral e, mais ainda, maturidade, e eu simplesmente repensei minha postura e resolvi lidar com a trinca inicial de episódios da terceira temporada como uma coisa só, em um comentário único.
Essa qualidade e maturidade já são perceptíveis, em retrospecto, logo no primeiro episódio. Payback é o famoso começo de temporada que tem como principal objetivo rearrumar o tabuleiro, apresentar o novo status quo e semear as linhas narrativas que serão abordadas no novo ano. Normalmente, esse tipo de capítulo costuma ser mais ingrato, pois precisa relembrar os eventos passados para justificar os acontecimentos presentes, o que às vezes leva à didatismos, correndo o risco de trabalhar muitos personagens ao mesmo tempo, tornando-se fragmentado. Mas nada disso ocorre aqui, pois o roteiro de Craig Rosenberg sabe balancear ação extrema e chocante com repaginação de personagens e situações, sem esquecer de introduzir novos conceitos, com a direção de Phil Sgriccia mostrando-se valiosa no tempo dedicado a cada núcleo, o que mantém a fluidez constantemente e suaviza as transições e os inevitáveis textos expositivos.
E isso é particularmente importante nesta temporada, pois ela é quase que um recomeço para The Boys ou, para quem leu os quadrinhos, uma maior aproximação da série ao conteúdo original, mas sem perder a identidade própria que a torna facilmente superior ao material base. De um lado, temos Billy Butcher e companhia trabalhando aberta e diretamente para um órgão governamental – aqui o FBSA, Federal Bureau of Superhuman Affairs – de controle dos super-heróis que tem como um dos dirigentes ninguém menos do que o próprio Hughie, ao lado de Victoria “Vic” Neuman. Em seguida, temos a promessa de que uma variação do composto V que dá poderes por 24 horas, será usada pelos “The Boys”, exatamente como nas HQs, de forma a equilibrar um pouco a disparidade entre eles e os supes. E tudo isso vem com uma passagem temporal de um ano após o escândalo envolvendo Stormfront e uma inquieta paz entre os dois lados do conflito macro da série.
Se Hughie parece ter encontrado sua vocação, estando feliz profissionalmente e também em sua vida amorosa ao lado de Annie, ainda que rapidamente descobrindo que sua chefe Vic é a “explodidora” de cabeças do final da temporada anterior e, pior, trabalha para a Vought, sendo a filha adotiva de Stan Edgar, o mesmo não se pode dizer de Billy que precisa se manter sob controle, sem liquidar seus inimigos mortais, mas que sucumbe à tentação de se tornar exatamente aquilo contra o que ele luta; de Marvin, que faz de tudo para abafar quem ele é para se tornar um pai de família, tendo largado toda a violência que vem a reboque de sua conexão com Billy e, mais importante ainda, de Homelander, cujo lado psicótico e descontrolado é magnificamente bem conduzido por Sgriccia nos dois primeiros episódios, já que não só ele precisa se comportar, como sofre pelo que ocorreu com Stormfront, pela sua perda de popularidade e, claro, pela constante humilhação a que Stan Edgar o submete quando faz de Starlight a co-capitã d’Os Sete.
Aliás, nesse tocante, vale salientar como Antony Starr, com suas bochechas de Don Vito Corleone, está soberbo no papel do super-herói mais poderoso e mais perigoso do mundo. Homelander é a personificação da fúria incontida que, porém, não tem oportunidade para dar vazão ao que sente até seu momento catártico de honestidade absoluta que, ironicamente, eleva sua popularidade e o liberta para fazer o que bem quiser, inclusive peitar Starlight com a ameaça que todos nós esperávamos e que ele coloca abertamente no jogo: mudar o panorama geopolítico do mundo com seus poderes. O personagem saiu da caricatura, digamos assim, para algo superior, algo que inclusive o coloca facilmente no protagonismo absoluto da série – pelo menos até aqui -, já que tudo o que vemos, toda a máquina que gira ao redor, incluindo Hughie, Billy e os demais, a introdução do Payback, versão dos Vingadores nesse universo, e o flashback estendido em Barbary Coast que conta em parte o que afinal aconteceu de verdade com Soldier Boy, existe eminentemente em função dele. Starr já havia encontrado o tom de Homelander nas temporadas anteriores, mas, agora, eu acho que ele encontrou sua alma e é realmente assustador ver o desenvolvimento dele.
Afinal, entre cada cena construída para ser pura diversão pervertida como a… hummm… desminiaturização explosiva de Cupim quando dentro do pênis de seu namorado, em uma grotesca, mas também hilária e absolutamente explícita referência à polêmica HQ da Marvel Comics em que Hank Pym usa seus poderes para dar prazer para à Janet Van Dyne (Vingadores #71, de 2003) e a transa de Profundo com Cassandra em que ele precisa olhar para seu amigo polvo em posição sexualmente sugestiva para alcançar o clímax, temos momentos horrendos e inacreditavelmente pesados – mesmo para The Boys – como a cena da masturbação de Homelander pelo que restou de Stormfront, a sequência do suicídio da jovem no telhado do prédio que é a completa subversão da famosa e linda página de Grandes Astros – Superman ou o almoço de boas vindas a Profundo em que Homelander o obriga a comer Timothy vivo. Quando uma série como essa, capaz de fazer uma lancha colidir com uma baleia para fazer comédia, despe-se de vez do humor puro, ainda que doentio, para lidar com questões de controle e de poder tendo como pano de fundo fortes críticas sociopolíticas que estão presente basicamente em cada diálogo (vide A-Train tentando reconstruir-se ao dizer que se interessa pela herança africana dos negros americanos), não se pode mais dizer que estamos diante de algo para ser assistido passivamente.
Ao contrário, The Boys, pelo menos com o que podemos ver nesses três primeiros episódios de sua terceira temporada, graduou-se de uma excelente paródia de super-heróis, para uma excelente série que vai além de rótulos. Claro, continua sendo hilária, continua sendo sobre super-heróis doentios, continua sendo sobre um grupo de pessoas sem poderes que querem manter os supes em xeque. Isso não mudou, nem mudará, mas, agora, The Boys parece estar disposta a fazer tudo isso para incomodar, para tornar cada cena uma denúncia sobre a corrupção do poder, sobre o abuso e manipulação de poder e sobre nossa constante e inequívoca incapacidade em lutar contra isso sem nós próprios nos deixarmos corromper pelo poder, em um ciclo vicioso e destrutivo que não nos permite vislumbrar um final feliz.
The Boys – 3X01 a 03: Revanche / O Único Homem no Céu / Costa Bárbara (The Boys: Payback / The Only Man In The Sky / Barbary Coast (EUA, 03 de junho de 2022)
Showrunner: Eric Kripke
Direção: Phil Sgriccia (3X01 e 3X02), Julian Holmes (3X03)
Roteiro: Craig Rosenberg (3X01), David Reed (3X02), Anslem Richardson & Geoff Aull (3X03)
Elenco: Karl Urban, Jack Quaid, Laz Alonso, Tomer Capon, Karen Fukuhara, Antony Starr, Erin Moriarty, Dominique McElligott, Jessie Usher, Chace Crawford, Nathan Mitchell, Aya Cash, Colby Minifie, Giancarlo Esposito, Claudia Doumit, Jensen Ackles, Simon Pegg, Laila Robins, Cameron Crovetti, Katy Breier, Miles Gaston Villanueva, Laurie Holden
Duração: 61 min. (3X01), 60 min. (3X02), 61 min. (3X03)