- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas da 1ª temporada e demais episódios e, aqui, de todos os quadrinhos.
The Boys pode ser lembrada e até adorada porque tem super-violência aos borbotões e momentos impressionantemente escrachados em uma narrativa que não parece ter limites para o que é capaz de colocar na telinha, mas o que realmente faz da série algo fora do comum, efetivamente separando-a do que poderia ser apenas mais uma obra cheia de pancadaria e explosões para agradar o público, são episódios como Nothing Like It in the World. São 68 minutos perfeitos que não querem saber de deslumbrar pelo exagero ou chocar com sangue e tripas, mas sim trabalhar seus personagens de maneira significativa e criativa e sem esquecer de impulsionar a trama, com revelações bem colocadas e bem trabalhadas.
Percebam com ninguém é esquecido, ninguém é deixado para trás na narrativa, ainda que, lógico, alguns personagens tenham naturalmente mais destaque do que outros. Se Francês entregando-se ainda mais às drogas, demonstrando seu amor por Kimiko e Kimiko sendo corroída pelo desejo de vingança pelo assassinato de seu irmão por Tempesta ganham poucos minutos de tela, esses minutos são dolorosamente significativos, contribuindo para nos conectarmos ainda mais com esse “casal não casal” improvável e para vermos na pele o preço que a luta deles cobra. Se Trem Bala tem não mais do que um minuto de tela, esse minuto é preciso, direto, com Capitão Pátria demitindo-o do grupo em razão de seu problema físico depois de uma… hummmm… digamos… visita terapêutica que abordarei mais para a frente e como essa demissão dialoga com a pergunta sobre falta de representatividade racial no programa de TV em que o líder dos Sete e Rainha Maeve participam.
E isso continua com a própria Rainha Maeve, que, em um mero diálogo de corredor com o Capitão Pátria depois que ele literalmente a empurra para fora do armário na entrevista, sente o pavor corrosivo de ele tentar fazer algo a Elena, uma espada que ela sabe que sempre existirá por sobre sua cabeça, e, claro, com o brilhante artifício de enquadramento do episódio em que vemos mulheres sendo entrevistadas com a revelação vindo apenas no final de que elas são candidatas à esposa de Profundo no projeto de Carol, a “recrutadora da Cientologia”, de fazê-lo retornar aos Sete. E o que dizer de Black Noir, que, sem diálogos, já vinha mostrando seu desequilíbrio na trinca inicial de episódios e, aqui, revela obsessão com Billy, o que pode – ou não – dar pistas para o caminho que a série percorrerá se Eric Kripke usar as HQs como inspiração, algo que ele inteligentemente só o faz muito por alto, alterando o necessário para tornar a série substancialmente melhor do que o trabalho de Garth Ennis com seus super-heróis doentios.
O mais surpreendente é notar como esses vários desvios narrativos – que não são desvios, mas sim complementos se quisermos fazer justiça a eles – de forma alguma atrapalham as três principais linhas mestres do episódio que, por si só, em mãos menos hábeis, já seriam demais: a road trip reveladora de MM, Hughie e Annie; a maneira que o Capitão Pátria encontra para lidar com seus problemas e a tentativa de resgate de Becca por Billy. Tudo é brilhantemente costurado em um conjunto harmônico pela direção de Fred Toye que não perde o fio da meada sequer por um segundo ao lidar com o complexo roteiro de Michael Saltzman, sabendo entrelaçar cada linha narrativa, por menor que ela pareça, sem dar a impressão que ela está fora do lugar ou que está subtraindo o tempo de outra mais importante, cada vez mais atraindo a atenção do espectador para esse rico mundo que vai sendo expandido a cada episódio.
A viagem de carro para Raleigh, na Carolina do Norte, é a história mais longa, servindo de pano de fundo para as demais e funcionando como uma forma de Hughie e Annie se reconectarem depois que Starlight é quase morta por Capitão Pátria no elevador e de MM ganhar mais contornos pessoais, com seu TOC, com a história de seu pai e por uma genuína vontade de conversar civilizadamente com outra pessoa, algo raro de se ver entre os “Caras”. O objetivo é seguir a pista que a Coronel Mallory entrega para Billy e que envolve uma super-heroína de outra geração, Liberdade. E essa busca misteriosa, que nem os envolvidos sabem a razão, desdobra-se na surpreendente revelação de que, ao que tudo indica, Tempesta está por aí há muito mais tempo que se imagina, mas jamais deixando de transparecer – quando não pode ser ouvida ou vista – o que verdadeiramente é, uma racista que sente prazer em chacinar negros. A surpresa, que é muito bem trabalhada inclusive ao perverter a expectativa de que a viagem seria para a trinca encontrar-se com a envelhecida Liberdade, serve para, de uma tacada só, alterar nossa perspectiva sobre Tempesta, sobre o que o Composto V é capaz de fazer como “efeito colateral” e, finalmente, sobre a História dos Super-Heróis nesse universo. Mas, pelo visto, essa é apenas a ponta do iceberg e há muito mais escondido por trás de décadas de manipulação genética pela Vought. O que fica absolutamente clara é melancolia da relação de Annie com Hughie que, diante do que paira sobre seus respectivos ombros, não pode prosperar assim tão facilmente.
O drama pessoal do Capitão Pátria é outro momento perturbador da série que fica ali no mesmo nível do abalroamento da baleia do episódio anterior. O retorno de Madelyn Stillwell causa aquela surpresa que é difícil de conciliar, que chega até mesmo a causar um estranhamento ruim que abre a Caixa de Pandora típica dos quadrinhos em que as mortes são relativas e só se mantêm enquanto convenientes. Mas não, essa estranheza ruim é logo substituída pela estranheza boa – com razoáveis doses de asco – quando Stillwell é revelada como Doppelganger servindo de “terapeuta” para o Capitão Pátria, com direito a leitinho e algumas coisas a mais… Se a psicopatia do grande símbolo super-heroico desse universo era algo que já havia ficado claro por diversas vezes, as sequências na cabana com “Stillwell” ajudam a sedimentar a ideia de que os distúrbios mentais dele vão muito além do mais completo desinteresse pela vida humana, com direito ao perfeito uso de Taxi Driver em uma cena em que vemos o Capitão simpatizando com Travis Bickle e que, mais tarde, ganha pareamento com ele falando com ele mesmo na versão ainda mais doente do famoso “are you talkin’ to me?” do clássico longa de Martin Scorsese. A egolatria do Capitão Pátria chega ao ponto máximo aqui – ou ao ponto máximo até agora – e mais uma vez Antony Starr tem uma daquelas performances que deixará o ator marcado o resto da vida como sendo o Capitão Pátria, ainda que Aya Cash como Tempesta esteja galgando a passos largos esse mesmo caminho com um trabalho realmente de se tirar o chapéu.
Finalmente, como a cereja no topo desse bolo cheio de camadas, vemos o drama de Billy Bruto em busca de sua esposa. Diferente de tudo o que poderíamos esperar de sequências com o personagem, todo e qualquer semblante de ação porradeira foi acertadamente eliminado, o que acaba tornando sua infiltração na fortaleza da Vought onde Becca e Ryan permanecem aprisionados bastante fácil e conveniente. Mas essa foi uma escolha absolutamente consciente do roteiro e qualquer alternativa a isso detrairia do conjunto da obra. Billy precisava de respiro com Becca e o espectador também precisava que essa conexão entre eles viesse para “explicar” o cliffhanger da temporada anterior e, de quebra, a importância dela para ele. Vemos um Billy apaixonado, entregue, capaz de qualquer coisa por seu amor. Mas Becca sabe que aquele homem ali é obcecado e violento, carregando um ódio incontrolável no peito, e, mesmo que ela ainda claramente o ame, Ryan existe em sua vida como seu outro grande amor e o jovem inocente definitivamente não está nos planos de futuro de Billy. A condução das sequências entre os dois é suave, mas sem perder tempo na forma em que estabelece que o relacionamento dos dois está fadado ao fracasso, pelo menos por agora. Karl Urban nunca foi um grande ator, mas até ele, dada a oportunidade, é capaz de mostrar complexidade, dor e tristeza profunda, sem tirar a casca de durão de Billy, algo que é amplificado pela forma doce com que Shantel VanSanten expõe os sentimentos de sua personagem.
Todos esses meus longos parágrafos de elogios a Nothing Like It in the World poderiam ser resumidos assim: se uma obra audiovisual quer chocar e causar repugnância com imagens doentias e de extrema violência, que isso seja feito equilibrando sequências assim, que sempre são bem-vindas, com outras dedicadas a desenvolver narrativas, construir personagens e estabelecer críticas significativas à realidade ao nosso redor. Entretenimento nunca precisa ser apenas descerebrado e idiota como alguns têm a coragem de apregoar e The Boys é um dos grandes exemplos que comprovam minha afirmação.
Obs: O Amazon Prime Video, um dia antes do episódio sob análise, lançou um curta-metragem de pouco mais de cinco minutos (disponibilizado na página do Facebook da série) intitulado Butcher que é focado, claro, em Billy, com cenas que mostram um pouco mais sobre o que aconteceu com ele a partir do momento em que reapareceu no estacionamento daquele restaurante até retornar aos Boys. Confesso que não sei muito bem por que esse material não foi inserido nas sequências que lidam com isso no episódio 2X02, até porque não há nada muito relevante ali além da introdução do passado militar do personagem, o que pode retornar de alguma forma, especialmente flashbacks, mais para a frente. Fica só um alerta aqui para quem quiser ver absolutamente tudo da série.
Obs 2: Este episódio prova mais uma coisa: é muito melhor acompanhar semanalmente uma série do que correr para ver tudo de uma vez. Nothing Like It in the World precisa de tempo para ser absorvido e sentido e não simplesmente atropelado pelo seguinte.
The Boys – 2X04: Nothing Like It in the World (EUA, 11 de setembro de 2020)
Showrunner: Eric Kripke
Direção: Fred Toye
Roteiro: Michael Saltzman (baseado em criação de Garth Ennis e Darick Robertson)
Elenco:
– The Boys: Karl Urban, Jack Quaid, Laz Alonso, Tomer Capon, Karen Fukuhara
– The Seven: Antony Starr, Erin Moriarty, Dominique McElligott, Jessie Usher, Chace Crawford, Nathan Mitchell, Aya Cash
– CIA: Laila Robins
– Vought: Colby Minifie, Giancarlo Esposito
– Outros: Shantel VanSanten, Cameron Cravetti, Nicola Correia-Damude, Patton Oswalt, Langston Kerman, Jessica Hecht, David Thompson, Jessica Hecht, Elisabeth Shue, Dan Darin-Zanco
Duração: 68 min.