Das tantas séries televisivas que fazem parte do legado e impacto cultural de Sex and The City, The Bold Type: Poder Feminino é uma das mais tributárias do universo feminino questionador e reflexivo das icônicas Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte. Lançada em 2017 e finalizada em 2021, a produção conta com cinco temporadas e muitas aventuras envolvendo as suas protagonistas em busca de respostas para diversas questões que envolvem a mulher contemporânea. Inspirada na revista Cosmopolitan, a série foi criada por Sarah Watson e produzida pela Freeform, rapidamente se tornando um fenômeno cultural, especialmente entre o público jovem feminino, haja vista a sua abordagem de múltiplas questões sociais e femininas com muita simpatia e carisma. Com tramas envolventes na maioria de seus episódios, bem como personagens bem desenvolvidos, a produção proporcionou aos espectadores uma plataforma firme para discussão de temas como feminismo, sexualidade, identidade e a luta por igualdade no local de trabalho. O espaço cênico central é a fictícia revista Scarlet, sediada em Nova York, mas ao longo dos episódios com média de 40 minutos, flertarmos com outros espaços da metrópole sempre efervescente e repleta de desafios para seus personagens que frequentemente discutem o que significa ser feminista nos dias de hoje, situadas em conflitos dramáticos que gravitam em torno do empoderamento feminino, diversidade, luta contra a misoginia, dentre outros.
Mesmo que em alguns poucos momentos, alguns conflitos sejam pueris e, a atitude de determinados personagens, possam ser consideradas equivocadas, The Bold Type: Poder Feminino segue em sua jornada de cinco temporadas com figuras ficcionais esféricas, cativantes e, o melhor de tudo, essencialmente humanas, com suas contradições e inseguranças. A estrutura narrativa é focada em três mulheres de perspectivas sociais, físicas e psicológicas distintas. Jane Sloan (Katie Stevens), uma jovem jornalista ambiciosa e dedicada, conhecida por sua ética de trabalho e paixão pela escrita é uma delas. Determinada, ansiosa e perfeccionista, a jovem enfrenta muitos desafios, tanto na vida pessoal quanto profissional, mas sempre busca excelência em tudo o que faz. Kat Edison (Aisha Dee), inicialmente assistente, mas logo alçada ao cargo de diretora de mídias sociais da Scarlet, é extrovertida, confiante e não tem medo de expressar sua opinião, o que em algumas ocasiões, lhe causa transtornos. Carismática, corajosa, impulsiva e ativista, ela explora sua sexualidade ao longo da série e é uma defensora fervorosa de causas sociais e justiça, principalmente pela interseccionalidade que a acompanha, afinal, das três protagonistas, ela é a mulher negra da história. O trio é completado com Sutton Brady (Meghann Fahy), personagem que começa na Scarlet trabalhando como assistente e sonha em se tornar uma estilista de moda. Engenhosa e sempre disposta a trabalhar duro para alcançar seus objetivos, a moça é sempre muito criativa, resiliente, mas sempre muito insegura.
Essas três jovens possuem como mentora, a fabulosa e cativante Jacqueline Carlyle (Melora Hardin), a melhor personagem da série, uma inspiradora editora-chefe que se posiciona como uma líder forte e compassiva. Assertiva, sábia e empática, ela equilibra o rigor de uma líder exigente com as suas colaboradoras, mas não deixa de lado alguns de seus traços maternais, apoiando-as em momentos de crise e comemorando suas vitórias. Sempre trajada de maneira elegante, a editora é dona das melhores linhas de diálogos ao longo das temporadas. Richard Hunter, interpretado por Samuel Page, é um dos advogados corporativos da empresa que possui a Scarlet. Ele se envolve romanticamente com Sutton e os dois vivenciam constantes tensões em cada uma das temporadas, em idas e vindas que não asseguram se, no desfecho, os dois conseguirão encerrar as suas jornadas juntos. Charmoso e comprometido com seu trabalho, ele lida com o dilema de equilibrar sua carreira e seu relacionamento com uma das protagonistas. E, dentre tantos outros personagens coadjuvantes importantes, destaco Alex Crawford (Matt Ward), um dos escritores da Scarlet, amigo próximo de Jane, Kat e Sutton, presença que oferece uma perspectiva masculina ao grupo. Solidário, introspectivo e equilibrado, ele fornece conselhos e é sempre um bom ouvinte. O mesmo caso é Oliver (Stephen Conrad Monroe), inicialmente durão e arrogante com suas colaboradoras, mas depois desenvolvido com mais suavidade.
Um ponto importante na série, que permite momentos de entretenimento com reflexão, é a discussão sobre questões acerca da sexualidade da mulher contemporânea de maneira aberta e honesta. Kat, em particular, se torna um símbolo da exploração da identidade sexual. Ao longo das temporadas, a produção a segue enquanto ela descobre sua bissexualidade e enfrenta os preconceitos que isso acarreta, desafiando estereótipos e promovendo uma maior discussão mais esférica de um assunto já bastante debatido, mas ainda dominado por resistência por uma parte da sociedade que ignora a sexualidade como fator determinante de nossas identidades. Além disso, The Bold Type: Poder Feminino não hesita em mergulhar em questões profissionais que frequentemente afetam as mulheres, como assédio sexual e moral, desigualdade de gênero e a luta pelo equilíbrio entre vida pessoal e profissional. A narrativa ilustra as experiências de suas protagonistas enquanto elas enfrentam a cultura corporativa e lutam por reconhecimento em um ambiente que muitas vezes valoriza mais a aparência do que o talento. Através das batalhas de Jane, Kat e Sutton, o público é levado a refletir sobre os desafios que as mulheres enfrentam em suas carreiras e a importância de criar ambientes de trabalho inclusivos e justos, numa espécie de atualização do que Sex and The City esboçou, mas não desenvolveu por conta de seu contexto ainda em prototipagem para algumas dessas pautas.
Outro aspecto que considerei apreciável na série é a sororidade entre as protagonistas e os demais personagens que gravitam em torno de suas existências, algo também trabalhado com maestria na jornada do quarteto anteriormente mencionado. Como os relacionamentos são outro componente central da narrativa, a produção mostra não apenas os romances e a vida amorosa de suas personagens, mas também as amizades e os laços familiares, reforçando a força da formação de famílias que nem sempre possuem laços sanguíneos. As dinâmicas de amizade entre Jane, Kat e Sutton são especialmente tocantes e refletem a complexidade e a importância das conexões femininas. Mas nada é hipócrita ou perfeito, ao contrário, essas relações são frequentemente testadas, mas também se fortalecem diante dos desafios que enfrentam, enfatizando a ideia de que as mulheres podem contar umas com as outras em tempos difíceis. Parece papo idealista, não é mesmo? Mas é o que, em linhas gerais, a humanidade tem buscado em eras cada vez mais complexas e turbulentas. Sendo assim, em seus 52 episódios, a narrativa seriada toca em temas sensíveis, frequentemente discutidos no contexto das lutas feministas contemporâneas, dentre eles, a interseccionalidade, a violência de gênero, igualdade salarial e oportunidades de trabalho, saúde e direitos reprodutivos, representação na mídia, dentre outros.
O conceito de interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Crenshaw, destaca como diferentes formas de opressão (como racismo, classismo, homofobia) se sobrepõem e afetam as mulheres de maneiras únicas. Na série, Kat traz essa abordagem interseccional como crucial para uma compreensão mais abrangente das desigualdades. A violência contra as mulheres continua a ser uma preocupação grave e os jornais não nos cansam de noticiar situações cada vez mais aberrantes. Feministas contemporâneas discutem a necessidade de políticas mais eficazes para combater o abuso doméstico, o assédio sexual, a violência de rua e outras formas de violência que desproporcionalmente afetam as mulheres. Outro tópico trabalhado na série, em momentos distintos, é a disparidade salarial entre homens e mulheres, algo que já mudou bastante, mas ainda permanece como um problema significativo. Questões como o direito ao aborto e o acesso a métodos contraceptivos são temas centrais nas discussões feministas e nas pautas femininas contemporâneas, as mulheres lutam pela autonomia sobre seus corpos e pela capacidade de tomar decisões informadas sobre sua saúde reprodutiva. Sutton, em especial, vai protagonizar momentos que tratam com especificidade essas questões.
Ademais, a forma como as mulheres são retratadas na mídia e na cultura popular é um tópico de grande debate. A objetificação e os estereótipos prejudiciais são combatidos por feministas que buscam uma representação mais justa e diversificada. Cientes dessa pauta, os dramaturgos da sala de roteiristas de The Bold Type: Poder Feminino retratam a temática nos entraves que a equipe de Jacqueline enfrenta quando a personagem decide desafiar o status quo e promover reflexões mais ousadas para as reportagens da revista. Diante do exposto, caro leitor, nas últimas décadas, as séries televisivas se tornaram um dos principais meios de entretenimento, atingindo uma popularidade sem precedentes. Antes, quando tínhamos apenas os filmes e as novelas como produções proeminentes, debates já eram empreendidos juntamente com a perspectiva do entretenimento, no entanto, a importância de mesclar os dois tópicos nessas produções cada vez mais tem contribuído para experiências mais ricas e significativas para o público que, por sua vez, tem se tornado também exigente e ignorado as narrativas que focam no entretenimento vazio e não conseguem sustentar bem os conflitos dramáticos que as suas estruturas se dispõem a retratar. Na saga de Jane, Kat e Sutton, os realizadores nos apresentam personagens complexos e muitos dilemas morais, em tramas que nos ajudam, enquanto espectadores, a nos identificar com as situações retratadas, promovendo empatia e compreensão. Não é preciso ser mulher, tampouco um homem gay, para se envolver com as histórias da série. Basta ser humano.
The Bold Type: Poder Feminino (The Bold Type/EUA, junho de 2017- junho de 2021)
Criador: Sarah Watson
Direção: Victor Nelli Jr, Jamie Travis, Anna Mastro
Roteiro: Sarah Watson, Celeste Vasquez, Amy-JoPerry, Nikita T. Hamilton, Wendy Straker Hauser, ChaseBaxter
Elenco: Katie Stevens, Aisha Dee, Meghann Fahy, Melora Hardin, Sam Page, Matt Ward, Nikohl Boosheri, Stephen Conrad Moore, Emily C. Chang, Dan Jeannotte, Siobhan Murphy, Lucas James Lee
Duração: 52 episódios (40 min).