No dia 30 de setembro de 1948, na Itália, o roteirista Gianluigi Bonelli e o atarefado desenhista (que fazia a maior parte da arte de Tex à noite, já que durante o dia se dedicava a projetos artísticos que vendiam mais) Aurelio Galleppini entravam para a história dos quadrinhos, embora ali estivessem apenas fazendo mais uma das criações de quadrinhos em tiras semanais tão famosos na Itália pós-Segunda Guerra. Em uma história com 32 tiras (base numérica das tramas do Águia da Noite que seguiria até 1967, mesmo que de 1958 para frente os primeiros encadernados com o material da primeira década do personagem já ganhassem compilações) em três partes, publicadas ao longo de três semanas, até 14 de outubro de 1948, surgia um dos mais famosos e longevos personagens dos quadrinhos do gênero western: Tex Willer.
A base para a criação do Universo de Tex veio, claro, do cinema de faroeste americano, sempre muito famosos na Itália e diante dos quais Bonelli e Galep passaram muito tempo. A base central para a criação do Universo do personagem veio das cinco fases iniciais da história do western no cinema, a saber:
- Era dos Primeiro Colonos e Vaqueiros, marcada por filmes como O Grande Roubo do Trem (1903), Os Invasores (1912), Batalha em Elderbush Gulch (1913) e Amor de Índio (1914).
- A Primeira Idade do Ouro, marcada por filmes como O Cavalo de Ferro (1924) O Rei do Deserto (1925), Três Homens Maus (1926) e Vento e Areia (1928).
- A Primeira Travessia do Deserto, marcada por filmes como Uma Cidade Que Surge (1939), No Tempo das Diligências (1939), Jesse James – Lenda de Uma Era Sem Lei (1939) e Aliança de Aço (1939).
- Segunda Idade do Ouro e Primeira Renovação Clássica, marcada por filmes como O Galante Aventureiro,(1940), A Volta de Frank James (1940), O Intrépido General Custer (1941) e Consciências Mortas (1943).
- Segunda Idade do Ouro e Segunda Renovação Clássica, marcada por filmes como Paixão dos Fortes (1946), Duelo ao Sol (1946) e Rio Vermelho (1948). Importante ressaltar que esta fase compreende os filmes até 1950, mas não fazia sentido adicioná-los como BASE de criação de um Universo, como no caso das obras anteriormente citadas. Claro que os criadores seguiram com sua paixão pelo cinema de faroeste americano e depois pelo western spaghetti, mas as influências vindas daí são adições ou reformulações de um Universo já criado, não a base dele.
Considerando o vasto material-base dos autores, não demorou muito tempo para que Tex caísse nas graças do público. Por ocasião de seu sexto arco (O Mistério do Ídolo de Ouro, 1949) o personagem já tinha um público fiel, chamava atenção nas vendas e demandava um maior tempo de seus criadores, preparando o território para a década seguinte, quando ganharia fama fora da Itália.
Na primeira publicação de O Totem Misterioso Galleppini situou a trama em Rainbow Canyon (Califórnia), no ano de 1898. Com o tempo, essa data seria revista e completamente apagada da cronologia de Tex, pois não se adequava à quantidade de histórias que posteriormente o ranger viveria. Embora existam divergências, é estabelecido que as primeiras tramas de Willer se passam por volta de 1860, seguindo até a década seguinte. Já as histórias do personagem mais velho, acompanhado do filho Kit, do amigo Carson grisalho e de Jack Tigre, se passam entre as décadas de 1880 e 1890. O que o leitor deve ter em mente é que as histórias não são contadas em ordem cronológica. Hoje, com tanto material de Tex já lançado e tantas possibilidades de comparações e organização é possível estabelecer um ano (ou lançar uma hipótese) para cada trama do personagem sempre com isso em mente: a ordem de publicação não é exatamente a ordem cronológica para este Universo.
Historicamente falando, os anos 1860 e 1890 são o período realmente correto para pensar as aventuras de Tex, tendo em vista que a partir da década de 1900 os Estados Unidos já entreva em outro ponto de seu desenvolvimento social, urbano e tecnológico, diminuindo o escopo de ação dos rangers como conhecemos nesse cenário. Claro que até podemos imaginar histórias alternativas de Tex (ou de Kit, o que seria mais coerente) servindo como homem da lei no início do século XX, mas não tem jeito, a ação desses personagens na segunda metade do século XIX sempre será a linha de frente e o que se espera das sagas de Tex.
Neste arco inaugural temos Tex ainda com franjas na camisa (que desapareciam dos desenhos depois) e já com a sugestão de que ele é um fora da lei, um justiceiro, mas claramente um homem bom. A trama se desenrola no contato do homem com Tesah, a índia Pawnee que foge do bando de John Coffin, que acusa a nativa de ter roubado alguma coisa dele, algo que depois sabemos ser uma “chave para abrir a caverna da pedra falante“. Para leitores que resolveram pegar Tex em ordem cronológica (boa sorte, mas não é uma empreitada necessária!) uma pequena confusão em relação ao momento da vida do personagem pode aparecer. Retroativamente, considere a seguinte questão: esta trama se passa provavelmente em 1865 e Tex está alguns meses depois de ter matado Tom Rebo, vingando a morte de seu irmão, Sam Willer. Isso faz com que o Águia da Noite se torne um fora da lei (a indicação do roteiro que comentei mais acima), por isso a estranheza na primeira conversa de Tex com Tesah que, para uma personagem feminina de final dos anos 40 e de em um país como a Itália, mostra uma inesperada sensualidade.
Alguns leitores modernos reclamam, sem motivo algum, que o tratamento dado a Tesah (e em geral a todas as mulheres com destaque narrativo nos primeiros anos na história de Tex — e não são muitas, de qualquer forma) é de “subserviente” e coisas do tipo. Vejam, é preciso entender que estamos falando de um quadrinho de 1948! Não dá para cobrar empoderamento feminino de um quadrinho desse tipo e nem de uma índia Pawnee fugindo com um medalhão mágico. A trama é ambientada no século XIX e considerando a História e os elementos sociológicos da época, até que o trabalho do roteiro é muitíssimo coerente. Há, claro, uma série de esperados cacoetes dos quadrinhos época como as escapadas quase milagrosas, tiros que passam de raspão e o corrupto Paiute, chamado Dente de Lobo, que morre momentos depois de cortar os nós que prendiam Tex na Rocha Falante.
As linhas de Galep são simples, claramente com passadas rápidas de lápis e organização bastante objetiva das cenas. O fato de o formato original do material ser em tiras obrigava tanto o roteirista quanto o desenhista a adotarem uma base concisa de avançar com a história e, mesmo assim, a noção de elipse aqui é aplaudível. Vejam a página abaixo. Ela reúne três tiras originais, no desfecho da saga e luta de Tex contra John Coffin e Fred. Mesmo simples, a arte é marcante, com boa perspectiva, variação inteligente de ângulo para os personagens (isso não acontece muito nas cenas das cavalgadas, vale ressaltar) e uma aceitável passagem do tempo e movimentação dos personagens de um quadro para outro.
O Totem Misterioso é uma aventura curta, de apenas três capítulos, mas com uma boa quantidade de ingredientes que nos explicam o por quê Tex cresceu e teve vida longa na Nona Arte. O roteiro de Bonelli só erra na colocação dos Deus Ex Machina, mas é fácil entender esse tipo de recurso pela época e pela despreocupação com que essa e mais uma porção de outras tiras dos primeiros anos do personagem foram escritas. É uma pena que ao longo dos anos as editoras fizeram revisões não autorizadas em algumas palavras para “diminuir o peso” de algumas colocações. Bonelli já tinha previsto isso em idade avançada, fazendo ele mesmo algumas concessões na compilação de seus primeiros textos, mas nada que cheirasse a censura politicamente correta.
Penso que este caso deve ser igualzinho aos dos álbuns iniciais de outro quadrinho europeu que passou por uma certa caça às bruxas, cheia de falta de contexto, agora no século XXI: Tintim (especialmente no caso do polêmico Tintim no Congo). Se no caso da criação de Bonelli-Galleppini temos um personagem do meio-oeste americano em plena era de “Conquista e Lutas no Oeste”, é lícito que ele tenha ações típicas da época e que as coisas representadas na história também sejam condizentes com a época. Pergunta-se: tudo precisa ser padrão história? Não, claro que não! Mas dentro do próprio Universo de Tex existem coisas fora do padrão de sua época diegética, porém não anacrônicas. Percebem a diferença?
Tex é um marco dos quadrinhos europeus. Um personagem com um senso de moral aberto a debates interessantes, sempre com o mote de luta contra a injustiça. Precisa dizer mais?
Tex: O Totem Misterioso (Il totem misterioso — Collana Del Tex #1 a 3) — Itália, 1948
Publicação original (Tex: 1ª Série): 30 de setembro a 14 de outubro de 1948
Sergio Bonelli Editore
Roteiro: Gianluigi Bonelli
Arte: Aurelio Galleppini
No Brasil: Tex Coleção #1 (RGE, 1986); Os Grandes Clássicos de Tex #3 (Mythos, 2006); Tex Edição em Cores #1 (Mythos, 2009).
32 páginas