__ O Oeste era assim, meu jovem! Para sobreviver na fronteira era preciso ter muita força de vontade, grande resistência, e atirar direito…
Kit Carson
O risco de mexer com um personagem de cânone já estabelecido por décadas e que tanta importância tem para o imaginário popular de um país é gigante, e não é toda editora que tem coragem de fazê-o. Tex Willer, criado em 1948 por Gianluigi Bonelli e Aurelio Galleppini é um desses personagens. Por isso é que entendemos perfeitamente o extremo cuidado da Sergio Bonelli Editore ao apresentar para o público a série Tex Graphic Novel (ou Tex Romanzi a Fumetti, na Itália), no ano de 2015. Um editorial que só falta desenhar para o público que “este não é o Tex a que estamos acostumados, não surtem!” é escrito por Mauro Boselli e um texto introdutório cheio de informações históricas e conceituais a respeito deste “selo” e da edição de estreia, O Herói e a Lenda, é redigido por Ferruccio Giromini.
O cuidado, porém, não é sem motivo. Isso mostra o grande respeito que a casa italiana tem para com seu principal personagem e também é bastante honesta com o leitor ao deixar claras as intenções com esses Romanzi a Fumetti, publicações fechadas, com autores convidados e com plena liberdade para trabalharem o Águia da Noite como sempre o imaginaram. E para dar início à mais uma empreitada, o veneziano Paolo Eleuteri Serpieri foi convidado. Serpieri, para quem não sabe, é o criador de Druuna, personagem que surgiu em 1985, no álbum Morbus Gravis, dando início a uma série de quadrinhos eróticos com mesclas de ficção científica e fantasia. Pois é. Foi justamente esse artista que escalaram para escrever, desenhar e colorir a primeira aventura de Tex Graphic Novel. E claro, a escolha não poderia ter sido melhor.
Serpieri é movido pela precisão. Sua história é muito curta (e alguns leitores podem achar isto um ponto negativo), mas não há nada que tenha para ser dito neste cenário que o autor não diga. Claro que o choque pela brevidade da trama pode frustrar algumas expectativas até históricas, visto que Tex tem sido desenvolvido em tramas de grande duração desde sua estreia, em O Totem Misterioso (ali, por necessidade do formato, mas a dinâmica foi depois incorporada em séries das décadas seguintes).
Amparado por um desenho de estupenda precisão anatômica, com finalização cheia de hachuras majoritariamente irregulares, que ajudam bastante a finalização do lápis, o autor cria de imediato a fronteira entre “lenda” e “realidade” da qual Boselli e Giromini falam em seus depoimentos introdutórios. Trazendo para o centro do enredo uma famosa frase do filme O Homem Que Matou o Facínora (John Ford, 1962), nos deparamos aqui com uma trama que não só é uma grande História do Oeste mas também um petardo metalinguístico em sua própria concepção. O Kit Carson das histórias em quadrinhos é o Christopher “Kit” Houston Carson, que morreu em 1868, ou um outro pioneiro que participou das Guerras Indígenas e também tinha esse nome? Ou é um “impostor”? Ou não é nenhum desses, é apenas um “homem ideal das histórias de faroeste“?
As perguntas são válidas e tocam em um ponto que pode passar despercebido para alguns leitores, mesmo a letra tendo sido dada nas primeiras páginas. O que conhecemos por “verdade” é apenas uma versão da História e a mistura de intenções, as variações da linguagem, os problemas da memória de quem conta, os floreios e a revelação ou não de alguns segredos são itens que precisam ser levados em conta. E vejam, por mais que esta trama tenha sido pensada “fora da continuidade de Tex”, é quase impossível para um leitor que saiba fazer o devido contexto, e que tenha uma compreensão menos engessada do personagem — ou seja, vendo-o multifacetado e em constante evolução, como todos os homens — não tomar esses eventos como verdadeiros e de fato enxergar o jovem Tex com um tipo de postura que em pouco tempo deixaria de lado. É por isso que O Herói e a Lenda é uma história sobretudo humana e honesta.
Mesmo com um grande nível de violência e com Tex matando seus inimigos, coisa que ele não faz na linha regular de publicações (bem… a menos que sua vida ou a vida de inocentes estejam em perigo, o que não é diferente aqui, a despeito do elemento de vingança em pauta), Serpieri não muda o conceito ético e moral do Águia da Noite. Sua liberdade criativa é utilizada para fazê-lo tomar decisões que qualquer pioneiro tomaria diante das mesmas situações. E bem ciente das discordâncias e olhares mais… legalistas de uma parte dos leitores, o autor colocou na boca de um Tenente o repúdio às ações do Águia, clamando por justiça com direito a julgamento, entrega ao xerife local e tudo o mais. Particularmente vi uma ironia muito grande de Serpieri neste momento e me diverti com a postura de Tex diante do Sr. Tenente “vamos fazer a coisa certa“.
O final de O Herói e a Lenda é um choque inesperado para o leitor. Mesmo. Mas um choque muito bom e que dependendo de quem está lendo, pode até emocionar. Porque os elementos pessoais e de habilidades físicas trabalhados na história, a temática questionadora das entrelinhas, a própria trama “fora do comum” para o nosso querido personagem de camisa amarela (aqui, com franjas, exatamente como no comecinho da saga, pelas mãos de Galep!) tudo isso de repente é potencializado pelo encerramento. O longo flashback aqui não incomoda e é perfeitamente finalizado, sendo capaz de nos retirar de meados do século XIX e nos colocar no início do século XX com uma informação que nos fará sorrir, entender e compartilhar o significado da frase sobre as lendas do Velho Oeste. Pelo menos dessa vez, a solidão inerente às histórias crepusculares de uma vida não nos deixa triste.
Tex: O Herói e a Lenda (Tex Romanzi a Fumetti #1: L’Eroe e la Leggenda) — Itália, 2015
Sergio Bonelli Editore
No Brasil: Tex Graphic Novel n°1 (Editora Mythos, 2016)
Roteiro: Paolo Eleuteri Serpieri
Arte: Paolo Eleuteri Serpieri
Cores: Paolo Eleuteri Serpieri
52 páginas