Os morcegos possuem larga representação no imaginário popular, das histórias de vampiros ao atual cenário pandêmico que acometeu o planeta terra em 2020, com pesquisas focadas na possibilidade da transmissão da covid-19 para os seres humanos ter nestes roedores um dos vetores que o filme Contágio, de 2011, em seu desfecho, explica didaticamente como imagina-se que aconteça. Menos cinematográficos que outros animais transformados em criaturas assassinas que colocam a humanidade em perigo, os morcegos já apareceram várias vezes em narrativas literárias e audiovisuais, mas geralmente como coadjuvantes, participações especiais em breves cenas de vampiros em transição ou como criaturas despertadas em alguma passagem com humanos a adentrar numa caverna ou coisa parecida. Monstros centrais de histórias de terror, no entanto, são mais parcas que a presença dos tubarões, ratos e aranhas, os mais escalados para assustar leitores e plateias ao longo da nossa tradição narrativa moderna. Em 1977, o escritor Martin Cruz Smith escreveu Terrores da Noite, transformado em filme no ano seguinte. Era a “hora” e a “vez” de os morcegos realizarem o seu festival de horrores, tendo como subtexto as celeumas de ordem política que movem os conflitos estadunidenses há bastante tempo.
Tensão social é o foco das questões contextuais do romance, pois a história de horror se desenvolve diante do conflito entre brancos e índios, celeuma tão antiga quanto o Velho Oeste. Basicamente, um membro da tribo Hopi desperta e põe a culpa branca diante da morte dos nativos dizimados desde os tempos coloniais em xeque, tendo os morcegos como animais aliados para o seu plano de vingança. É assim que uma cidadezinha pacata assiste ao constante ataque de morcegos que não toma de assalto apenas os rebanhos e traz prejuízos econômicos. Tais criaturas estão bem interessadas no frescor do sangue humano. É quando somos apresentados ao chefe de polícia, aos cientistas e alguns membros da sociedade civil, unidos para reordenar uma cidade transformada num palco para a encenação destes monstros assustadores e vis. Focado na abordagem de lendas indígenas, o romance é focado na tradição da vingança conduzida pelas relações sociais nada pacatas entre nativos e herdeiros da colonização que sabemos, devastou povos e demarcou a supremacia territorial invadida pela lógica de poder europeia. O horror desse sentimento de retribuição vem junto ao sobrevoar destes roedores em cenas asquerosas e sinestesicamente aterrorizantes, focadas nos detalhes para nos fazer estremecer.
O motivo? Os morcegos-vampiros. Ao longo do romance, essa espécie é descrita em pormenores. São apontados como animais que habitam as selvas mexicanas há eras, mas que começaram a rumar para o norte, leia-se, Estados Unidos, numa migração noturna que deixava sempre um rastro de bois, cabras e até mesmo pessoas vitimadas pelo caminho. Tratados como milagres da evolução, tais criaturas são descritas como espessos, com voo rápido como de uma andorinha, tão próximos de seus companheiros de travessia aérea que a onda demarcada pela presença destes bichos parecia uma massa sólida, famintos com seus focinhos em forma de espadas para absorver o cheiro dos animais. São características expostas num panorama detalhista sobre a vida destas criaturas apresentadas também num percurso além da teoria, em plena ação, na busca por saciar a sede de sangue ao atacar animais ou seres humanos que atravessarem o caminho. Depois do primeiro cadáver em Tewa, cidade onde a ação se desenvolve, a extensa trilha de corpos aumenta vertiginosamente, numa demonstração da eficácia do deus da morte exaltado pelo xamã.
Martin Cruz Smith, conhecido por seu interesse por suspense e terror, traz em sua ancestralidade, traços da cultura que expõe em Terrores da Noite. Filho de um músico de jazz, o escritor exerceu o jornalismo antes de se tornar escritor e ter a sua história de morcegos transformado numa produção cinematográfica hollywoodiana, impulsionada pela relação dos seres humanos com os animais desde os clássicos do horror posteriores ao processo de paranoia delineado pela Guerra Fria e também pelo impacto cultural de Tubarão, livro e filme. Bacharel em Artes pela Universidade da Pensilvânia em 1964, Smith não ficou apenas na seara da zooficção e explorou outros segmentos culturais ao longo de sua carreira, apontado por Stephen King, em Dança Macabra, como um dos escritores obrigatórios para os interessados em compreender o terror enquanto gênero literário. Essa instância de legitimação ajudou Terrores da Noite a circular mais pela cultura e se tornar um romance de sucesso no mercado editorial, mesmo que a sua estrutura seja carregada de imprecisões, momentos letárgicos e busca por transformar em algo muito grande até mesmo alguns trechos mais triviais.
Ao longo de suas 242 páginas, a escrita de Smith transmite ao leitor uma série de imagens atordoantes. Passagens com morcegos amontados no para-brisa de um carro com uma vítima em potencial na parte de dentro é de arrepiar, causar agonia, função básica de uma publicação que precisa mexer com nossos sentidos por meio do texto escrito. Os seus personagens não são aprofundados, algo que não acredito ser a proposta do romance voltado de fato para o que importa na seara do entretenimento, a ação, recurso que também não é tão frequente como imaginamos, o que faz de Terrores da Noite um livro curioso, mas pouco empolgante. Se não há interesse em desenvolvimento psicológico e outras atribuições de uma produção literária menos comum, poderia então investir mais na ação e colocar os morcegos para devastar com mais força a cidade. É uma obra literária menor em suas atribuições estruturais e apenas mediana no quesito diversão. Com tradução de Edna Pacheco Fernandes, na versão da Editora Nova Cultural, o material se apresenta como um romance volumoso para a quantidade de momentos de ação que dispõe. Ainda assim, eficiente nos trechos “cinematográficos” em que descreve a presença dos morcegos-vampiros, espécie que ao longo da evolução de nossa evolução, aproximou-se por causa da pecuária e sua oferta de alimentação abundante.
Ademais, as questões científicas são contempladas nos diálogos expositivos, responsáveis por explicar biologicamente os animais que aqui são descritos como monstros, mas não antropomorfizados como em outras narrativas do horror ecológico. Claro que há um “a mais” na forma como as criaturas agem, mas são hábitos próprios desses roedores com asas que não possuem boa fama desde os filmes sobre vampiros. Descritos como animais que devem ser evitados, mantidos em sua dinâmica natural sem intervenção humana, os morcegos são explicados minuciosamente, em partes distintas, em abordagens orgânicas, sem parecer forçado. Num determinado momento, alguém diz que eles bebem cerca de cento e cinquenta por cento de seu peso em sangue e ainda conseguem alçar voo. É quando o personagem científico da história entra para explicar que eles urinam enquanto bebem a sua refeição de sangue, absorvida pela região cardíaca do estômago enquanto o fluido sanguíneo é expelido. São também animais que carregam o vírus da raiva, mas curiosamente, não se contaminam. “Portadores da morte”, carregam consigo o poder de dizimar sem sequer ter consequências. Mais assustador que isso impossível!
Terrores da Noite (Nightwing, Estados Unidos, 1977)
Autor: Martin Cruz Smith
Tradução: Edna Pacheco Fernandes
Editora no Brasil: Nova Cultural (1986)
Páginas: 242