Em mais um turbilhão de excessos e provocação política, o cineasta Christoph Schlingensief nos arremessa no último capítulo de sua Trilogia Alemã, escrevendo, com outros dois colegas, um roteiro que é um espelho distorcido da Alemanha pós-reunificação (o filme é de 1992), revelando cicatrizes sociais e políticas com uma intensidade visceral, constantemente abraçando o grotesco. Conhecido por sua estética agressiva e postura anárquica, Schlingensief não busca aqui o didatismo ou a análise sociológica tradicional para mostrar um país que não conseguia extirpar a extrema-direita de suas esferas administrativas. Pelo contrário, o diretor nos apresenta um mosaico terrível de violência, dependência sexual e alienação, explorando os núcleos sociais impactados pelo extremismo e revelando a convivência diária em territórios visitados estrategicamente por corporações, ou virtualmente ajudados por Estados que mantêm relações lucrativas com fascistas.
Mesmo com um texto que consegue reforçar melhor sua principal linha narrativa, gerando um andamento mais “acompanhável” do que em 100 Anos de Hitler (1989) e O Massacre Alemão da Serra Elétrica (1990), Terror 2000 é bem mais cansativo, e tende a perder o espectador com mais facilidade. A trama, ambientada em uma Alemanha recém-reunificada e tomada por um ódio crescente contra imigrantes, se desenrola de forma parcialmente fragmentada, como um reflexo da desordem social posta na tela. O sequestro de um assistente social e da família polonesa que ele acompanhava até um campo de imigração, serve como ponto de partida para uma jornada pelos subterrâneos da sociedade alemã noventista, onde o sexo obsessivo (fuga rápida e violenta da realidade, intragável até mesmo para os algozes) se misturam a um nacionalismo exacerbado e à ascensão de lideranças de extrema-direita — mais especificamente, neonazistas –, que disputam as eleições e veem seus seguidores aumentarem dia a dia.
Schlingensief segue apostando em imagens chocantes, um recurso que, pelo exagero, acaba perdendo parte do impacto pretendido; todavia, olhando para a unidade do filme, entendemos o motivo dessa escolha sem muitos limites. A violência, seja ela física ou psicológica, é retratada de forma explícita, espelhando a brutalidade das relações. Essa crueza estética tem um propósito claro: gerar sentimentos conflitantes e incômodos no espectador, diante da barbárie social representada, tirando-o de sua zona de conforto e obrigando-o a analisar por um outro ângulo a alardeada “liberdade e prosperidade” do país pós-reunificação, um processo ainda mais burocrático e melhor organizado do que aquele visto em O Massacre Alemão da Serra Elétrica, quando as sementes desse horror ainda estavam brotando.
O uso da iconografia nazista e das características fascistas, acompanhando o comportamento do ministro, dos funcionários públicos e da população jovem, não é apenas provocativa, na obra. O cineasta utiliza essa estética para denunciar a ascensão neonazi nos anos 1990, mostrando como o passado obscuro da Alemanha ainda se fazia presente, disfarçado sob um véu de civilidade e “obediência às leis e ao processo democrático da República”. Em Terror 2000, enxergamos qualquer nação do mundo à beira do abismo político dos golpes de Estado; da dominação dos poderes por grupos religiosos (vejam a trajetória do líder cristão interpretado por Udo Kier!); do aumento de propagadores de pânico moral (inclusive a imprensa!); e de uma força desmedida dada ao mercado, que aceita e financia qualquer ditadorzinho que possa facilitar seus lucros e seu controle sobre a terra e os indivíduos. Para estes, o que importa é o aumento do faturamento e a possibilidade de impedir qualquer força popular de mostrar organização e rejeição aos seus abusos. A ameaça constante da violência e da intolerância nunca foi um problema para estes “cidadãos de bem“.
A crítica, aqui, não se limita à questão do racismo e da xenofobia. A direção amplia seu foco para atingir a hipocrisia da classe média alemã, que se refugia em um mundo de aparências enquanto ignora os problemas sociais que corroem o país. As obsessões consumistas e luxuriosas são apenas os sintomas mais leves de uma sociedade doente em muitos aspectos. Como em qualquer outro filme da fase adulta de Schlingensief — um legítimo herdeiro da linha politizada e experimental do Cinema Novo Alemão — Terror 2000 é uma obra que não dá para se ignorar. Ela é um quadro perturbador de um país ainda assombrado pelo nazismo, mergulhado em falta de memória histórica e polarização política. Sua estética grotesca e narrativa fragmentada não oferece respostas fáceis ou soluções simplistas diante do absurdo. Para todos os lados que se olhe, o que falta é a organização do povo. Sem isso, a única arma da população será uma coleção de frases de efeito e julgamentos morais, como a personagem de Margit Carstensen, que diz em dado momento do filme: “mas você não pode se alinhar aos nazistas; os nazistas são maus!”. Há sempre muito a ser feito, e sempre há esperança. Mas não é com notinhas de repúdio faremos a suástica virar um cata-vento. É com pauladas.
Terror 2000 (Terror 2000 – Intensivstation Deutschland) — Alemanha, 1992
Direção: Christoph Schlingensief
Roteiro: Christoph Schlingensief, Uli Hanisch, Oskar Roehler
Elenco: Margit Carstensen, Peter Kern, Udo Kier, Susanne Bredehöft, Alfred Edel, Artur Albrecht, Kalle Mews, Brigitte Kausch, Dietrich Kuhlbrodt, Detlev Redinger, Irmgard Freifrau von Berswordt-Wallrabe, Oskar Roehler, Gary Indiana, Eva-Maria Kurz, Antje Schumacher
Duração: 71 min.