O sertão enquanto espaço para contemplação estética e ambientação para o desenvolvimento de conflitos humanos não é novidade em nosso cinema. Salvaguardadas as devidas proporções, Terra e Luz me faz lembrar de A Herança, versão de Hamlet no nordeste brasileiro. São produções com trabalho de som criado em torno de especificidades para o desenvolvimento das propostas alegóricas desenvolvidas no roteiro. Sob a direção de Renné França, realizador que comando o seu próprio texto, o filme já começa com uma epígrafe direta e objetiva acerca de sua atmosfera sombria. Ao citar Bram Stoker, os créditos expõem que “os mortos viajam depressa”. Aqui, a menção ao autor de Drácula não é aleatória, pois logo saberemos que estamos diante de uma narrativa sobre vampiros num Brasil pós-apocalíptico, situação refletida por meio de alegorias que trazem para o debate central o problema da fome e seus desdobramentos sociais.
Parte integrante da Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, o filme trafega por outras plataformas de streaming, mas foi exibido em evento virtual por meio do serviço Darkflix, espaço focado na distribuição de filmes do gênero para o seu público consumidor. Logo em sua abertura, sons de respiração surgem mesclados aos gritos apavorantes de uma suposta vítima que não vemos, apenas ouvimos. Galhos secos são pisoteados, a natureza se oferta em sua dimensão selvagem, longe dos grandes centros urbanos, num trabalho de design de som intenso de Giule Martins, adequado para o estabelecimento da atmosfera com poucos diálogos, contemplação da paisagem de paleta alaranjada, expostas nos constantes planos gerais da direção de fotografia também eficiente de Carlos Cipriano, e dos atos de seus pouquíssimos personagens.
Num futuro distópico, os seres humanos foram dizimados por criaturas sombrias, aparentemente vampirescas. É um mundo para se temer a noite, mortal para a sobrevivência das pessoas que ainda restam, todos em busca de um pouco de humanidade, esperança ceifada pelo espaço nada gentil de um bioma hostil, habitado pelos seres mencionados, perigosos e aberrantes, mas sem o mesmo nível de periculosidade da fome, o grande horror da história e a sina da nossa existência desigual. O protagonista sem nome, creditado como Homem, é interpretado com cautela por Pedro Otto, personagem que tenta sobreviver ao ambiente selvagem do cerrado, ameaçado por vampiros que aparecem com capas pretas e são contemplados por meio de um interessante jogo de sombras. Ele atravessa a ambientação hostil com uma garotinha (Maya dos Anjos), figura ficcional que se torna a responsável pelos momentos de exposição das vozes e pensamentos dos personagens. Quando a menina não está em cena, não há diálogos, apenas gestos e afins.
Com direção de arte de Cris Ventura e Victor Hugo Diniz, Terra e Luz é um filme diferente do que se convencionou a consumir enquanto narrativa de entretenimento. Algumas passagens são levemente cansativas, mas o resultado geral é um belo ensaio sobre a condição humana diante de hostilidades de um mundo tomado pelo vampirismo das relações sociais opressoras que nos sufoca, angustia e promovem a descrença diante da possibilidade de mudança. Além do apurado design de som, a produção conta com uma trilha sonora também eficiente, coordenada por Pedro Breno Gondin Machado, autor da textura percussiva que insere a cítara de Sankirtana Dharma, instrumento que exerce papel fundamental na construção da atmosfera sombria. Ademais, esse terror goiano se estabelece como autoral diante da nossa longa tradição com filmes ambientados neste espaço geográfica, de Vidas Secas e Deus e O Diabo na Terra do Sol, aos mais recentes, realizados durante o período que se convencionou chamar de Cinema da Retomada.
Admirador de nomes do gênero, tais como José Mojica Marins e Alfred Hitchcock, o cineasta Renné França concebeu a ideia para Terra e Luz durante uma filmagem pelo interior de Goiás. No trajeto com média de 141 km, o realizador observava a paisagem e buscava extrair algo ficcional daquele espaço que mescla hostilidade para travessia, mas também reflete a beleza dos desafios da natureza. Não foi preciso mais que dois dias para a concepção inicial germinar e se tornar texto dramático, entregue aos seus contatos do curso de Cinema do Instituto Federal de Goiás. Da ideia ao roteiro, do texto ao filme em si: Terra e Luz é um exemplar de sucesso no que tange aos aspectos estéticos do atual cinema brasileiro, bem como delineia, de maneira bem elucidativa, o ótimo caminho que trilhamos na busca por narrativas ficcionais de terror mais autênticas, produções que não precisam necessariamente emular os elementos do terror estrangeiro para garantir qualidade em sua estrutura dramática, tampouco potencial para ser narrativa de entretenimento.
Terra e Luz — Brasil, 2017
Direção: Renné França
Roteiro: Renné França
Elenco: Maya dos Anjos, Pedro Otto, Renné França, Rafael Freire, Marcelo Jugmann
Duração: 74 min.