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Crítica | Terra e Liberdade

por Marcelo Sobrinho
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Terra e Liberdade, do cineasta britânico Ken Loach, é um verdadeiro marco na vida de qualquer cinéfilo interessado em cinema político. Vai muito além do senso comum de filmes maniqueístas sobre luta de classes ou sobre o embate capitalismo x socialismo e também daqueles que só se prestam a fazer uma homenagem acrítica a um determinado movimento histórico. Loach é um dos grandes cineastas do cinema político europeu, embora uma de suas maiores obras seja o drama muito mais existencial – Kes. O inglês venceria em 2006 a Palma de Ouro no Festival de Cannes por um filme que mais parece um Terra e Liberdade requentado – refiro-me a Ventos da Liberdade – e é curioso que não tenha sido a forma original o vencedor de um prêmio dessa importância. Terra e Liberdade, embora tenha suscitado muitas críticas na época de seu lançamento, segue imbatível como o melhor drama sobre a luta política em seu sentido mais amplo, ainda que ele peque aqui e ali na construção de seus argumentos.

Mas primeiro é preciso compreender que a história de Dave, um membro do Partido do Partido Comunista inglês, desempregado e desgostoso dos rumos da própria vida, que se junta aos populares que combatiam os franquistas durante a Guerra Civil Espanhola, é contada por um diretor abertamente ligado à esquerda e sem nenhum compromisso com a isenção ideológica. Terra e Liberdade é um filme sobre um dos momentos mais célebres da história da esquerda mundial e narrado por um esquerdista, o que jamais implica em uma falsificação desonesta de fatos históricos. Mas é bastante claro que o filme trata com idealismo dos atos praticados pelos membros do POUM (Partido Trabalhador de Unificação Marxista), que são mostrados na grande tela como os verdadeiros representantes de uma esquerda bem intencionada e que não estava disposta a negociar aquilo que não devia. As esquerdas autoritárias e divisionistas sofrem uma crítica histórica bem dura por parte de Ken Loach. Isso aparece na brilhante cena em que o inglês filma a assembleia em que os camponeses, os milicianos do POUM e os anarquistas debatem acerca da coletivização das terras.

Com sua câmera segura, trabalhando em primeiros planos alternados com planos de conjunto, Ken Loach decupa em tela a própria fragmentação da esquerda naquele conflito. Esse é o primeiro grande momento de revolução em Terra e Liberdade, que, até ali, aparentava ser apenas uma grande ode à luta armada enquanto modus operandi para a defesa dos princípios marxistas. Ali Ken Loach adiciona os fundamentais ingredientes de complexidade não só para fazer justiça histórica aos fatos e não incorrer em vulgar falsificação deles, como também para tornar sua obra artisticamente mais interessante e rica. O notável cineasta e socialista tira proveito de um conflito histórico tão importante para defender na linguagem do cinema que as esquerdas sempre se fragmentaram e sempre foram algozes de si mesmas. O protagonista Dave chega a ser envolver com o Partido Comunista espanhol, regido pelo stalinismo soviético e que tinha interesse em minar a luta dos rebeldes marxistas espanhóis para que o regime russo fosse dominante por toda a Europa. Ken Loach bate pesado nos stalinistas espanhóis na cena em que Dave, arrependido, rasga peremptoriamente a sua carteira do PCE.

Terra e Liberdade torna-se profundamente emocionante em seu terço final, que mostrará o movimento das milícias marxistas sendo tragicamente derrotado pelos exércitos oficiais. Sempre considero o recurso da câmera lenta nesses momentos um tanto arriscado, já que a linha que separa a dose correta de drama do apelo fácil mais cabotino nem sempre é tão clara assim. Mas o plano que registra a morte da miliciana Blanca, depois de toda a luta mostrada em tela, praticamente pede o recurso por tudo aquilo que representa. O tiro fere de morte o próprio idealismo dos rebeldes. Note-se inclusive que Blanca é assassinada de forma covarde – pelas costas e sem chances de defesa. Com o poder de seu cinema, Ken Loach manda um recado histórico ao que fizeram os stalinistas, anti-democráticos e hegemônicos, contra as outras facções da esquerda na Europa. O premiado diretor já declarou considerar a luta dos rebeldes na Guerra Civil Espanhola uma das poucas ocasiões históricas em que o socialismo genuíno postulou de fato o poder. O seu fracasso está ali representado em cinema melhor estirpe – sendo alvejado ignominiosamente pelas costas e tombando aos pés do inimigo.

Concordar com as teses de Ken Loach é absolutamente irrelevante diante da qualidade de seu filme. Assim sendo, independente do lugar do espectro ideológico em que o espectador se encontrar, certamente ele se sentirá comovido por uma história que, acima de qualquer ideologia, versa sobre a necessidade de lutar por algo. De se engajar de algum modo para que o amanhã tenha, ao menos, um pouco mais de brilho que o hoje. Penso que o cerne de Terra e Liberdade seja mesmo o imperativo de uma luta constante travada pelos homens por seus ideais. O corte seco, que recusa pieguices e transita do sepultamento de Blanca para o de Dave décadas depois, abrirá caminho para um plano final em que todos erguem os braços, com os punhos cerrados e a alma decidida pela luta perene contra o fascismo. Dure ela o quanto durar.

Terra e Liberdade (Land and Freedom – 1995, Reino Unido)
Direção: Ken Loach.
Roteiro: Jim Allen.
Elenco: Ian Hart, Rosana Pastor, Frédéric Pierrot, Icíar Bollaín, Tom Gilroy, Marc Martínez.
Duração: 109 minutos.

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