Um romance da mesma linha de perfis femininos fortes de Jorge Amado, parte integrante do universo de Tieta do Agreste e Gabriela Cravo e Canela. Assim é Tereza Batista Cansada de Guerra, uma história sobre os caminhos pavimentados por uma figura ficcional envolta numa redoma constante de coronéis machistas e escravidão sexual. Publicado em 1972, a volumosa abordagem de 462 páginas que narra a trajetória de Tereza Batista se situa numa época opressora para as mulheres inseridas numa sociedade onde o patriarcalismo não tinha forças contrárias para estabelecer uma batalha justa. O corpo feminino, associado ao masculino, era visto como algo para o prazer masculino e a procriação no interior de um casamento guiado pela obediência e submissão. Em sua passagem, no entanto, Tereza Batista subverte a ordem. Sai do processo cheio de traumas e marcas físicas, mas não se curva ao que supostamente estava ditado no determinismo misógino que acometia as demais mulheres daquela época. Tecido com muitas vozes e memórias, o romance divide-se em cinco partes igualmente empolgantes, desde os primeiros momentos da infância da protagonista ao seu casamento com um marinheiro, futuro que ela sequer conseguia imaginar, só lutar para tentar, ao passo que as primeiras situações de miséria e misoginia se estabeleciam em sua vida.
Com trama desenvolvida numa região que engloba trechos sergipanos e baianos, Tereza Batista Cansada de Guerra nos apresenta a protagonista a morar com os seus tios, após a morte de seus pais num terrível acidente na estrada. Menina livre, brincalhona e sábia, vivia a subir pelas árvores do lugar, representando jagunços nos poucos momentos lúdicos com as demais crianças das redondezas. O destino, já previamente estabelecido, se modifica drasticamente quando ela é vendida aos 12 anos para o Coronel Justiniano, levada para ser praticamente a sua escrava sexual por uma bizarra quantia. Era uma situação comum na época: ter meninas em famílias mergulhadas em situação de miséria, vendida para poderosos de seu entorno, homens que desejavam a satisfação sexual diante da condição social alheia. As pessoas pobres, não muito diferente das relações estratificadas socialmente na contemporaneidade, não podiam se opor aos coronéis, pois corriam o risco de perder a vida ao se colocarem contra as ordens destes proprietários rurais que dominavam a economia e a política com mão de ferro.
Felipa, tia de Tereza, a vende sem remorso algum. Ela é parte de um ardiloso sistema que educa as mulheres para aceitação diante de coisas do tipo. No passado, a personagem passou por situação semelhante, o que não impediu que agisse conforme os seus opressores com a sua própria sobrinha. Ela não se diferencia muito, em termos de caráter, de Peixe-Cação, um homem conhecido por abusar de garotas da região, até mesmo do interior de sua casa, um ciclo de cultura do estupro que ainda hoje podemos, infelizmente, contemplar com horror na mídia. De volta ao processo de andanças de Tereza Batista, a moça atravessa perrengues tenebrosos na casa de Justiniano, obrigada a se relacionar com o seu dono, em momentos sempre inoportunos. Qualquer comportamento considerado inadequado era julgado com punição severa. Num deles, a moça quase foi queimada com um ferro em chamas. Mesmo consciente dos riscos, a jovem se apaixona pelo boêmio Daniel, outro sem caráter, mas alguém com quem ela queria de verdade se relacionar sexualmente. Se o coronel descobrisse, a sua sentença de morte estaria assinada.
Ainda assim, ela resolve arriscar. O segredo logo é descoberto, mas ela aniquila o coronel numa manobra muito astuta. Tereza Batista, transformada em tema de minissérie, música, cordel, xilogravura, dentre outras artes, é presa e condenada, liberada por um homem que supostamente seria o seu salvador: o coronel Emiliano, personagem que reproduz com ela, de maneira diferente, a mesma lógica do “dono anterior”. Quando a jovem engravida, ele a força a realizar um aborto, pois seria inadequado deixar um legado com alguém vista exclusivamente para satisfação sexual. Ele a tratou melhor? Sim, mas o ciclo de perversidade é o mesmo, em momentos diferenciados. Quando o homem morre, Tereza Batista fica sem direito a nada e vai trabalhar no cabaré Paris Alegre. Depois disso, conhece Januário Gereba, um cara casado, com a esposa doente, em suma, alguém sem perspectiva futura de relacionamento. Viaja com um médico para o interior do estado, mas este suposto companheiro ideal foge depois de um tenebroso episódio de bexiga que aniquila numerosas vidas. Guerreira, ela enfrenta não apenas a doença, como também age como enfermeira e ajuda a população local. Há, ainda, em sua jornada, a prisão por batalhar com a polícia numa greve de prostitutas, reação das profissionais do sexo após os políticos criarem um projeto para retirar os bordeis de regiões centrais e aloca-los em áreas degradantes. Ao menos, seu final é otimista, com o marinheiro de seus sonhos. Não apaga as marcas, mas garante privilégios que outras heroínas literárias não tiveram a chance de aproveitar.
Tereza Batista Cansada de Guerra (Brasil) — 1972
Autor: Jorge Amado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 472