Em viagem à Itália para a filmagem de seu longa-metragem Nostalgia (1983), Andrei Tarkóvski vivia em uma situação que jamais tivera contato antes. As mesmas autoridades que barraram a sua ida à França para a apresentação de Stalker (1979) permitiram-no sair do país no início dos anos 1980, corroborando a aparência clara de exílio a que o diretor estaria submetido a partir de então. É ainda mais aflitivo perceber que Nostalgia é o penúltimo filme do diretor, que em seguida iria à Suécia para fazer aquela que talvez seja sua obra mais lancinante: O Sacrifício (1986).
O teor dessas duas obras finais de Tarkóvski é de saudade, ausência e até loucura, tendo dois fortes personagens interpretados pelo ator sueco Erland Josephson (um dos integrantes do Triunvirato de atores de Ingmar Bergman). Nostalgia e O Sacrifício não mostram apenas o epílogo de um mestre do cinema mas a reticência de um cinema de descobertas da alma, um cinema livre do supérfluo e dotado de forte carga metafórica muito bem contextualizada a um determinado momento histórico ou fictício. No caso de Nostalgia, Tarkóvski terá a presença do poeta e roteirista Tonino Guerra (de filmes como Deserto Vermelho, E La Nave Va, Amarcord) como guia em sua viagem pela terra de Dante.
Durante um mês, período em que percorrem regiões de Nápoles, Sorrento e Lecce, os dois profissionais tentam encontrar as peças para dar forma à película que escreveriam juntos e que marcaria o início dessa jornada pessoal, espiritual e artística de Tarkóvski. O resultado dessas caminhadas, conversas, almoços, contemplações e discussões sobre o futuro filme deu origem a este documentário para a TV chamado Tempo de Viagem (1983), escrito e dirigido por Guerra e Tarkóvski e produzido para a Radiotelevisione Italiana (RAI).
Por ser um “documentário de bastidor”, Tempo de Viagem tem o grande mérito de mostrar a produção direta de um artista escrupuloso, com concepções artísticas transformadas em teoria, ao mesmo tempo que traz o lado pessoal dele e de seu anfitrião no exílio. [Vale dizer que essa estadia ainda não era declaradamente um exílio, já que as autoridades ainda não haviam lhe recusado emprego na URSS, isso viria pouco depois]. A amizade e a relação profissional entre Guerra e Tarkóvski é muitíssimo interessante de ser vista e o espectador é apresentado a uma situação ímpar, principalmente por se tratar de uma criteriosa escolha de cenários naturais para a obra que viria a ser Nostalgia.
Para admiradores da obra de Tarkóvski, esse documentário é certamente uma peça essencial. Podemos até citar nuances da obra literária do diretor (Esculpir o Tempo) contidas no filme, bem como o núcleo de ideias que ainda não estavam no papel mas que parecem límpidas e já muito bem estruturadas na mente do mestre russo. Seja por sua constituição como obra investigativa e observadora, seja como porta de entrada para o mundo pessoal/cinematográfico de Andrei Tarkóvski, Tempo de Viagem é um documentário que também nos fará viajar para um mundo onde a alma vive em um caos. O resultado final pode ser observado em Nostalgia, que ganha outros tons após a sessão desse documentário.
Tempo de Viagem (Tempo di viaggio) — Itália, 1983
Direção: Tonino Guerra, Andrei Tarkovski
Roteiro: Tonino Guerra, Andrei Tarkovski
Elenco: Tonino Guerra, Andrei Tarkovski
Duração: 62 min.