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Crítica | Tecnopólio: A Rendição da Cultura à Tecnologia, de Neil Postman

A pílula vermelha de que precisamos.

por Ritter Fan
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O autor, educador e teórico americano Neil Postman faleceu aos 72 anos, em 2003, deixando um legado de obras provocadoras que, tenho certeza, nem ele imaginaria que seriam tão prescientes e necessárias no dias de hoje tomados por um dilúvio de informação de toda natureza que torna difícil – quase impossível – separar o joio do trigo e da onipresença da alta tecnologia no cotidiano de todos. Em seu livro Divertindo-nos Até a Morte (minha tradução para Amusing Ourselves to Death, pois não localizei publicação dessa obras no Brasil), publicado em 1985, ele afasta o medo de que viveríamos um futuro orwelliano em que a informação seria suprimida e afirma categoricamente que essa supressão aconteceria da maneira como Aldous Huxley sugeriu em Admirável Mundo Novo, ou seja, com uma oferta tão grande de conteúdo, que não seria mais possível distinguir o que é valioso e o que não presta e aborda com vigor a influência negativa da televisão nesse processo.

No momento em que escrevo a presente crítica, estamos no ano de 2024 e a forma como a televisão converteu a notícia em diversão – daí o título do livro que mencionei no parágrafo introdutório – é coisa do passado remoto para muita gente, pois, se pararmos para pensar, as redes sociais, de maneira muito mais intensa, perniciosa e perigosa do que a “caixa de idiotas” como a TV foi apelidada por muitos, solidificaram o entretenimento no lugar da notícia, no lugar do real conteúdo. E Tecnopólio: A Rendição da Cultura à Tecnologia, penúltimo livro da bibliografia de Postman originalmente publicado em 1992, é um consciente e inteligente alerta especialmente sobre os efeitos nocivos do computador sobre as pessoas, algo que pode muito facilmente ser transposto – e multiplicado exponencialmente – para o ambiente de pouco mais de 30 anos depois de sua publicação, funcionando, na prática, como a pílula vermelha que Neo decide tomar em Matrix.

Pode ser que a reação de muitos aos meus comentários logo acima levem à conclusão de que sou anti-tecnologia, até mesmo partidário daquele pensamento nostálgico de que “na minha época tudo era melhor”, algo a que Postman foi também alvo ao longo de toda sua carreira de escritor, mas isso é ser reducionista e, muito sinceramente, como o subtítulo diz muito claramente, render-se à tecnologia cegamente, afastando a cultura no processo. E de forma alguma eu quero também dizer que Postman está absolutamente certo em tudo o que afirma, mas sim que seu livro merece atenção, merece ter sua existência lembrada, para servir de contrapeso ao esmagador tecnopólio que vivemos e que Postman, talvez, hoje chamasse de tecnoditatura.

Mas o que é tecnopólio? O termo que ele cunhou é como o terceiro estágio da relação da Humanidade com a tecnologia. No primeiro, que ele simplesmente batiza como o estágio das Ferramentas, o homem criou instrumentos para resolver problemas práticos de seu cotidiano, normalmente de natureza física, como arados, armas e assim por diante e normalmente vivendo em culturas de alguma forma teocráticas, em que o lado espiritual tinha enorme importância. No estágio seguinte, o da Tecnocracia, o homem passou a criar ferramentas que passaram a desafiar dogmas religiosos, levando à ideia do progresso tecnológico, mesmo que em muitas culturas – e Postman é muito claro em todas as suas obras quando afirma que se restringe ao Ocidente e, mais especificamente, aos EUA – tenham continuado a se apegar, ainda que de maneira mais “solta”, a aspectos religiosos e filosóficos. Na Tecnocracia, o Homem passou a inventar porque podia inventar, não necessariamente para resolver problemas imediatos de seu cotidiano.

E, finalmente, chegamos ao Tecnopólio, em que Postman afirma que a tecnologia, então, passou a ditar comportamentos e cultura. O homem passou a inventar não por alguma noção de progresso, por mais distante que possa ser, mas sim somente porque é possível inventar ou, reduzindo em miúdos, na base do “porque não?” e, claro, na base na recompensa financeira. Nesse cenário, cria-se diversos monopólios tecnológicos, divisões entre aqueles que têm a tecnologia e entre aqueles que não têm e também entre aqueles que sabem usá-la e aqueles que não sabem usá-la. A dependência – ou a submissão – à tecnologia é tamanha que poucos sequer têm consciência disso, algo que, se aplicarmos para o tempo presente, é ainda mais verdadeiro e assustador.

Postman é muito assertivo com o que escreve e a leitura parece do tipo em que o autor está “gritando” com o leitor, algo que pode causar estranhamento, mas é apenas um estilo, apenas uma maneira de transmitir sua mensagem de maneira concisa e, claro, provocar seu público, porque provocar é preciso, especialmente hoje em dia em que provocações não levam a debates, mas sim à lados fortificados que se recusam a ceder um milímetro sequer em suas respectivas visões de mundo, como se ceder território fosse o correspondente a perder parte de sua própria personalidade. Entendam o livro e o estilo de Postman como um sacolejo forte no torpor geral da população mundial, uma espécie de “serviço de despertador” que não tem o menor objetivo de colocar o coelho novamente dentro da cartola, mas sim nos fazer conscientes da existência do coelho, o que já é uma vitória se acontecer com uma ou duas pessoas.

Nessa linha assertiva de escrever, Postman vai aos extremos e retira do status de ciência aquelas todas os estudos e profissões que não  se relacionamento diretamente com o que posso chamar de “ciência tradicional”, ou seja, as ciências sociais não são, em sua visão, ciência, mas sim opiniões – como as dele, vale dizer – que chegam ao ponto ridículo (para ele) de dar números à inteligência com testes de Q.I. e até a provas em escolas e faculdades. Ao transformar tudo em ciência, nada é ciência. Mais ainda, ele chega a usar a invenção do estetoscópio para simbolizar o distanciamento do médico e do paciente, como o primeiro instrumento que o médico que visitava os pacientes em casa usaram para criar uma “barreira” entre os dois seres humanos em questão, algo que ele então extrapola para a absoluta dependência dos médicos atuais por exames de toda a sorte realizados por máquinas e quantificados em relatórios, tudo alimentando uma indústria enorme que tem interesse justamente nisso. E, vamos lá: quantas vezes você sentou na frente do médico e ele perguntou realmente detalhadamente o que você está sentindo antes de pedir uma “batelada” de exames nos mais diferentes laboratórios, somente para os resultados serem enviados virtualmente para ele que, também virtualmente, dá seu diagnóstico? Postman sem dúvida exagerada muito, mas mesmo nos exageros, ele não passa tão longe assim de nossa realidade do futuro em relação a ele…

Tecnopólio: A Rendição da Cultura à Tecnologia não é para ser compreendido e internalizado como verdade absoluta como, infelizmente, muita gente compreende e internaliza notícias de redes sociais com 140 caracteres, mas o livro de Neil Postman é, sem dúvida alguma, uma atraente maneira de nos fazer parar um pouco para pensar no meio em que vivemos e em nossa dependência dos aparelhinhos que estão 24 horas por dia ao nosso lado, sendo a primeira coisa que pegamos quando acordamos e a última que deixamos na mesa de cabeceira quando vamos dormir, e tudo sem que, depois de horas a fio usando-os, tenhamos absorvido real conhecimento. Sim, estamos em uma ditatura da tecnologia e nós precisamos pelo menos ter consciência de sua existência para termos alguma chance de filtrar aquilo que efetivamente tem valor.

Tecnopólio: A Rendição da Cultura à Tecnologia (Technopoly: The Surrender of Culture to Technology – EUA, 1992)
Autoria: Neil Postman
Editora original: Knopf
Data original de publicação: janeiro de 1992
Editora no Brasil: Editora Nobel
Data de publicação no Brasil: 1994
Páginas: 222

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