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Crítica | Tarzan (1999)

por Gabriel Carvalho
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“Não importa aonde eu vá, você sempre será minha mãe.”

O encontro do homem civilizado com o homem incivilizado é uma das premissas mais constantes da narrativa. A desconstrução de tais termos e de todo o seu significado, ao mesmo tempo, também desconstrói a própria história do mundo, sendo que a “descoberta” da América é um dos grandes momentos da narrativa mundial. Pocahontas, em 1996, já havia explorado essa vertente de uma maneira equivocada. Já Tarzan, produção de 1999, caminha, ao invés de desbravar o Novo Mundo, para o continente africano e, embora seja uma aventura de época, situada no século XIX, abrange questões que ainda são extremamente atuais, como o rigor das pesquisas científicas e a caça de animais exóticos. Edgar Rice Burroughs, no início do século XX, apresentou um dos personagens mais icônicos da literatura ao mundo, e que, não muito tempo depois, também tornar-se-ia um dos personagens mais icônicos do cinema, em razão de muitas adaptações cinematográficas, entre elas, a primeira, Tarzan, o Homem Macaco, de 1918. O homem “incivilizado” era objeto primário de estudo dentro do âmbito de uma das construções mais significativas da civilidade, o cinema. Não tardaria para uma das grandes das animações decidir colocar o pé nessa selva.

A decisão da Walt Disney Animation Studios em, muitas décadas após o lançamento de Burroughs, produzir uma animação protagonizada por esse indivíduo fictício extremamente vivo no imaginário popular, contudo, soa atrasada para o final do século XX. Mogli, o Menino Lobo, em 1967, adaptação do clássico de Rudyard Kipling lançado antes mesmo de Tarzan, o Filho das Selvas, também era uma narrativa sobre o homem nascido na selva. Com diferenças cruciais entre a jornada de Mogli e a de Tarzan, além das intenções proferidas em cada uma das histórias, Pocahontas, apenas quatro anos mais velha, termina por ser a verdadeira obra que questiona a realização de Tarzan, quase como uma carta de desculpas aos espectadores, descontentes com a história da mulher indígena, Pocahontas, que se apaixonou pelo homem inglês, John Smith. Já no longa de 1999, os papéis são invertidos, com Tarzan (Tony Goldwyn) sendo a figura “incivilizada” e Jane Porter (Minnie Driver) a figura “civilizada”. A redundância de uma abordagem tão similar, entretanto, não consegue ignorar a grande capacidade de Tarzan em encantar o espectador que se frustara, sendo esta uma viagem por terras desconhecidas, a segunda, muito mais charmosa e engajante.

O resultado é, dessa forma, muito mais positivo, mesmo que os conflitos deste longa-metragem sejam menos complexos que os de Pocahontas, pois, por exemplo, o interesse amoroso do personagem principal não passa por qualquer questionamento interno, pois sua paixão por Tarzan não desbrava territórios proibidos, embora existam barreiras. A figura do grande antagonista, portanto, é bastante distanciada da de Jane –  e também da de seu pai, o carismático Professor Porter (Nigel Hawthorne, em seu último papel, anterior ao falecimento do ator em 2001). O filme, em sua simplicidade, acaba, contudo, por ser muito mais honesto com os espectadores do que Pocahontas foi, sem tentar desconstruir um maniqueísmo, pretendendo estar quebrando estereótipos, para apenas transferi-lo a outro lugar, mas entendendo as construções dos arquétipos de uma narrativa como facilitadores necessários para o desenvolvimento da história de amor. Tarzan, em sua proposta, é uma obra muito menos complicada para que sejam cumpridos os objetivos traçados do que Pocahontas, mas, ao menos, consegue atingir em cheio a sua simplicidade, abraçando, no mesmo passo, acessórios para o storytelling direcionados a encantar o espectador.

A magnífica montagem inicial, embalada pela voz de Phil Collins – apesar de Tarzan ter uma identidade musical forte, com melodias e letras aclamadas e relembradas, a obra não é um musical -, define ao espectador a capacidade da direção em nos guiar para um caminho dramático, convencendo-o, após essa sequência, da necessidade de Tarzan em encontrar suas raízes e, a partir dela, decidir finalmente qual caminho trilhar. A jornada do personagem é clássica, sem muitos mistérios, mas, por outro lado, não menos emocionante, apesar da familiaridade e previsibilidade. O formato da trajetória é genérico, mas a obra, que vai muito além de uma estrutura de roteiro, não pode ser categorizada dessa maneira. A afeição que os espectadores desenvolvem pelos personagens, não apenas arquétipos, mas também seres com nomes e identidades, transforma a receita em um prato especial. Em um desses casos, o protagonista, paralelamente a perda de seus pais, acaba ganhando novos, adotivos, mas que são, contudo, gorilas. A carinhosa Kala (Glenn Close), então, mostra ser uma representação da maternidade belíssima, relacionando-se com o público através dessa criação dramática inicial, que concilia ambas as perdas – pois Kala também perde o seu filho -, amarrando-as, consequentemente, em fortes níveis emocionais.

Quando, em um dos primeiros aspectos similares e também distintos entre as obras, Tarzan, o homem criado por gorilas, busca comunicar-se com os ingleses, o longa-metragem de Chris Buck e Kevin Lima entende ser necessário mostrar o processo de aprendizado e, consequentemente, dar espaço para a criação de cenas específicas que possuem o intuito de desenvolverem tanto laços quanto espirituosidade. A solução para distanciar a comunicação entre as duas culturas, a dos homens e a dos gorilas, também é eficiente, exemplificando o momento de primeiro contato entre Jane e companhia e o povo de Tarzan, com o protagonista emitindo grunhidos para aqueles que fazem parte de sua família, mostrando uma consciência mais bem apurada dos realizadores na construção de universo, vide que, em Pocahontas, a distinção entre as duas línguas é extremamente confusa. Com isso, a obra também ganha camadas consideráveis de aproximação entre os personagens, uma questão extremamente forte tanto entre Tarzan e os humanos – principalmente Jane – e entre Tarzan e os gorilas – principalmente Kala. O protagonista, no final das contas, parece ser a personificação do ser mais amistoso do mundo, a mistura ideal entre homem e primata.

O antagonismo também é bastante válido, pois, diferentemente da presença maligna do longa-metragem de 1995, Clayton (Brian Blessed) é, embora saibamos de sua índole, repulsiva sob a nossa ótica, um personagem aparentemente inócuo de início, aproximando-se do protagonista assim como Jane e seu pai se aproximam. Quando o clímax surge, os momentos que ambos os personagens tiveram juntos, em trocas que, de um outro olhar, fomentaram o amor entre Jane e o protagonista, se não afetaram em nada a personalidade de Clayton, certamente afetaram a de Tarzan, tornando tudo, portanto, muito mais intenso e a traição mais poderosa. Para reiterar, não podemos esquecer que o protagonista é, teoricamente, um poço cheio de bondade, interessado em apenas descobrir coisas novas, como, obviamente, quem ele é. Do outro lado da floresta, Kerchak (Lance Henriksen) também é uma espécie de antagonista, sem aceitar a presença de Tarzan, um homem, no meio do seu bando. Nesse escopo, temos conflitos nos dois meios em que o protagonista se apresenta, sendo que, enfim, ambas funcionam perfeitamente, ainda mais por se unirem em última instância, em uma conversa com o espectador sobre pertencimento.

Celebrando um encontro de culturas que agrega e não destrói nenhuma delas, e combinando isso com uma das criações visuais mais fenomenais do Renascimento Disney, mesclando animação tradicional com computação gráfica de modo impecável e, em consequência, dando margem a cenas de ação espetaculares, bastante dinâmicas e fluidas, temos a prova cabal de que a última incursão dessa fase de ouro também é uma de suas melhores. Assistir Tarzan balançando-se pelos cipós ou escorregando entre as árvores, de um tronco a outro, é um deleite imensurável. Um ponto menor, porém, seria a vertente cômica, não tão apurada, mas nunca totalmente desnecessária, pois existe, ao mesmo tempo, uma construção do discurso, visto que permite-se, concomitantemente, a criação de vínculo entre Tarzan e os seus amigos da floresta, como Terk (Rosie O’Donnel) e Tantor (Wayne Knight). Mesmo assim, os alívios estão distantes da narrativa, como, por exemplo, Tantor, o elefante, que termina sendo desperdiçado como um paralelo a Tarzan, saindo do meio de seus iguais para se unir a uma espécie diferente. O elefante é, no final das contas, apenas um personagem engraçado, nada mais além disso.

Enquanto O Estranho Mundo de Jack coloca Jack Esqueleto no seu devido lugar, não como Papai Noel, mas como Jack Esqueleto, Tarzan abraça o mundo em que o personagem fora criado, tornando-o uma possibilidade para a sua vida continuar. O personagem, por exemplo, em momento algum vai para o continente. O seu encontro com o seu eu interior não precisaria, necessariamente, o distanciar do mundo que aprendeu a amar. São dois mundos possíveis de serem conciliados, algo que, curiosamente, Pocahontas e Mogli, o Menino Lobo não quiseram entrar no mérito, separando os protagonistas de John Smith, no primeiro citado, e de Balu e Baguera, no segundo citado – um aspecto que o longa-metragem de Jon Favreau fez questão de “consertar” – com aspas mesmo, embora a conclusão da animação de 1967 contrarie a construção de relacionamentos do longa original e, por isso, foge de uma ordem mais interessante de resolução para a problemática principal da obra clássica, que se revela menos poderosa do que poderia ser. Tarzan, diferentemente desses seus outros companheiros, por muito tempo, poderá gritar o quanto quiser, no lugar em que ele verdadeiramente pertence, que ele escolheu pertencer.

Tarzan (EUA, 1999)
Direção: Chris Buck, Kevin Lima
Roteiro: Tab Murphy, Bob Tzudiker, Noni White (adaptação da obra de Edgar Rice Burroughs)
Elenco (vozes originais): Tony Goldwyn, Minnie Driver, Brian Blessed, Glenn Close, Nigel Hawthorne, Lance Henriksen, Wayne Knight, Rosie O’Donnell.
Duração: 88 min.

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