“O cinema é uma grande fraude”. Em uma das passagens de Tangerinas, filme estoniano dirigido pelo georgiano Zaza Urushadze, esta frase é apresentada aos telespectadores. Conquanto a cena possa parecer banal diante toda a conjuntura do roteiro, a proclamação de tal mote exibe um dos expoentes da película. Sendo a sentença proposital ou não, a obra consegue um feito quase inédito quando comparada às produções hollywoodianas que abordam a guerra. Primeiramente, Tangerinas consegue criar uma atmosfera ímpar ao não privilegiar o lado conhecido desses grandes conflitos, — as bombas, armas, destruição, explosões e os efeitos especiais por vezes forçados e infindáveis — dando maior ênfase ao viés ideológico dessas hostilidades, principalmente através de um protagonista que é civil, não apresenta nenhuma preferência partidária e um cenário que não, não é um campo de batalha!
Em meio a uma incessante gama de produções cinematográficas pós 11 de setembro e invasão ao Iraque que se mostram repetitivas, panfletárias, tendenciosas e medíocres, o filme de Urushadze é inovador. Como o próprio diretor disse, acaba não sendo sobre a guerra em si; e sim sobre os valores humanos e a humanidade em condições extremas. Chega a ser surpreendentemente gratificante contemplar uma película que não apresenta os Estados Unidos, a Europa ou qualquer outra nação como salvadora e defensora da pátria. A guerra é exibida como desnecessária e animalesca, como o caminho mais distante para obter a paz, em que nenhum dos lados é íntegro.
Tangerinas é um filme histórico que se passa na Guerra da Abecásia, no início da década de 1990. A disputa por esse pequeno território teve início com a dissolução da União Soviética, no final da Guerra Fria. O recém-independente Estado da Geórgia travava uma luta pela região com separatistas da própria Abecásia que, por sua vez, recebiam o apoio de russos, chechenos e outros povos. Apesar de ficcional, a película de Urushadze poderia muito bem ter acontecido durante o conflito — não somente devido ao roteiro, como também à ambientação e às personagens, visto que algumas foram baseadas em pessoas que o diretor realmente conheceu.
Ivo (Lembit Ulfsak) e Margus (Elmo Nüganen) trabalham no meio rural com a produção de tangerinas, típicas da região. O início da guerra forçou seus parentes, que moravam com eles, a voltarem para a Estônia. Os dois homens, todavia, continuaram resistindo para permanecerem no local em que viveram durante toda sua vida. O cotidiano dos fazendeiros é por fim afetado quando um grupo de chechenos entra em conflito armado com um de georgianos, próximo à propriedade dos produtores de tangerinas. Com a morte de quatro dos seis militantes, Ivo e Margus conseguem salvar o checheno Ahmed (Giorgi Nakashidze) e o georgiano Niko (Misha Meskhi). É claro que as desavenças ideológicas dos combatentes sobreviventes iriam proporcionar conflitos. No entanto, perante a promessa de que não irão matar um ao outro sob o teto de Ivo, uma espécie de guerra fria — a referência não poderia ser mais clara — é sucedida entre Ahmed e Niko.
A desenvoltura de Tangerinas é espetacular. Apesar de não trazer muita inovação com a câmera e a montagem, a ambientação é sensacional. Contrapondo os cenários clássicos de filmes baseados em guerras, as cenas são extremamente simples e se passam inteiramente na aldeia isolada de Ivo e Margus. A fotografia, apesar de esteticamente elegante, não deixa o telespectador esquecer de que um grande conflito está acontecendo. A hostilidade e superficialidade do combate são traduzidas com leveza através das imagens de uma paisagem bonita e, ao mesmo tempo, melancólica.
Tangerinas consegue, com sutiliza, prender o telespectador. Não são efeitos especiais ou um roteiro cheio de reviravoltas que mantém um bom ritmo para a película. Na verdade, o oposto ocorre: as ótimas atuações do elenco, centrado em quatro personagens, mesclam o temor da guerra com a sensibilidade que ainda existe no ser humano. Um exemplo extremamente pertinente é a personagem Ivo, que constrói uma empatia incrível. Mesmo sendo indócil em alguns momentos, o solidário homem não impede que a guerra destrua seu humor, apresentado em diversas cenas — ainda que interrompido por algum inconveniente, nos remetendo de maneira ríspida ao ambiente de guerra. Em suma, a obra questiona também a maneira de retratar esses grandes conflitos, demonstrando que, por trás de todas as proezas bélicas e ideológicas, também existe um ser humano.
A simplicidade, destreza e delicadeza do filme estoniano são concretizadas através dos diálogos. Tanto Ahmed quanto Niko mostram-se dispostos a defender a qualquer custo suas ideologias. Contudo, fica em aberto o questionamento comum à máquina da guerra: afinal, eles sabem qual o fundo desse ódio? O que é esse rancor imposto por alguém — quem? — que se mostra desvantajoso para todos os lados e é desumano? Tangerinas consegue ser um filme antibélico sem se tornar piegas, e despertar, especialmente com seu desfecho, um otimismo acerca do rumo que toma a humanidade. A película de Urushadze nos lembra que temos nossas individualidades e virtudes que, apesar de muitas vezes se perderem em meio a ideologias e espectros materialistas, fazem parte da essência do ser humano e podem ser o caminho para a destituição dos discursos de ódio e ascensão de, por fim, um ambiente realmente humanitário.
Tangerinas (Mandariinid) — Estônia, Geórgia, 2013
Direção: Zaza Urushadze
Roteiro: Zaza Urushadze
Elenco: Lembit Ulfsak, Elmo Nüganen, Giorgi Nakashidze, Misha Meskhi, Raivo Trass
Duração: 87 min