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Crítica | Sweet Tooth – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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  • Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas e dos quadrinhos em que a série foi baseada.

Toda história, seja ela baseada em fatos reais ou puramente fictícia, tem pelo menos duas versões e isso é particularmente verdadeiro para o que convencionamos batizar de fábula ou conto de fadas, que costumeiramente contam com uma versão sombria, mais pesada, bizarra e triste e outra iluminada, por assim dizer, mais leve, modesta e alegre. Normalmente, conhecemos uma ou outra versão, raramente as duas (ou mais) e geralmente a mais aguada, já que é ela que pode ser mais facilmente absorvida por crianças pequenas, passando, assim, de geração em geração. Mas o que realmente importa é que uma versão não necessariamente cancela ou anula a outra e faz parte da riqueza criativa humana essa variedade a partir de uma mesma história.

E por que comecei assim a crítica de Sweet Tooth, nova série de ficção científica/fantasia do Netflix? Muito simples: porque aqueles que leram os quadrinhos originais homônimos escritos por Jeff Lemire e publicados entre 2009 e 2013 pelo infelizmente finado selo Vertigo, da DC Comics, podem estranhar – e torcer o nariz para – a escolha narrativa da série desenvolvida por Jim Mickle em afastar tanto quanto possível a pegada violenta e sombria do autor das HQs, privilegiando uma abordagem clara, de cunho evidentemente esperançoso e positivo, algo que já começa quando o protagonista, o garoto híbrido de humano com cervo Gus, tem aparência preponderantemente humana e, como se isso não bastasse, fofíssima graças ao trabalho entusiasmado do encantador jovem Christian Convery. Em outras palavras, essa versão de Sweet Tooth é sim, propositalmente, a versão light da obra original, mas sem deixar de capturar a essência do material fonte, construindo um caminho próprio seja ampliando as linhas narrativas das HQs, seja criando outras completamente inéditas e fazendo o que toda adaptação audiovisual de uma obra literária ou de quadrinhos deveria fazer, ou seja, oferecer algo realmente diferente, que acrescente valor à toda a mitologia já estabelecida, respeitando as exigências de cada mídia de forma que o espectador possa ter duas obras diferentes, mas com as mesmas raízes.

Então, de certa forma, essa adaptação é o que muita gente pejorativamente classificaria como “versão disneyficada” da obra original. No entanto, será que isso é realmente ruim? Será que, se a essência for mantida (e ela é, não adianta espernear), precisamos dos detalhes sórdidos, da bizarrice e da violência gráfica que costumam ser elementos tão bem quistos por uma audiência que vem se tornando cada vez mais imune e de certa forma insensível às histórias de vieses  positivos? Considerando, ainda, que Sweet Tooth tem como pano de fundo um mundo dizimado por um vírus misterioso em uma pandemia imparável, algo que é uma extrapolação não completamente impensável do que estamos vivendo ao vivo e a cores neste exato momento, será que era mesmo necessária a abordagem sombria original ou será que a pegada mais leve oferece um pouco daquilo do que realmente precisamos no momento, ou seja, esperança e luz no fim do túnel?

Portanto, vejo com muitos bons olhos as alterações feitas por Jim Mickle e também Beth Schwartz, ambos trabalhando como showrunners. Sweet Tooth ganhou, no audiovisual, pernas próprias e pode ser vista como uma inspirada adaptação das HQs que, sob certa ótica, funciona como uma espécie de preâmbulo para os eventos especialmente do segundo encadernado. Mas não estou aqui para fazer a crítica somente para quem leu os quadrinhos, pois, provavelmente, é uma minoria. Para quem não leu, a história gira em torno do menino híbrido mencionado que, depois de viver 10 anos recluso com seu pai (Will Forte) no parque florestal de Yellowstone enquanto o mundo acabava ao seu redor, sai de lá ao lado do silencioso ex-jogador de futebol americano Tommy Jepperd (Nonso Anozie) em uma jornada para achar sua mãe. Se os quadrinhos podiam ser classificados como “Bambi encontra Mad Max“, a série parece se mais próxima de “Bambi encontra O Senhor dos Aneis“, isso em termos de atmosfera e ambientação, claro, algo que não é sem querer já que ela foi toda filmada justamente na Nova Zelândia.

A dupla principal tem aquela química imediata dos melhores filmes de buddy cop, com Anozie fazendo um grandalhão carrancudo de bom coração que carrega o peso da culpa de atos passados que aos poucos vamos conhecendo e Convery um menino que enxerga tudo com inocência e deslumbramento, com cada passo além do lugar protegido onde morava sendo uma descoberta e um assombro para seus olhinhos brilhantes, sempre mantendo sua postura otimista, em uma típica jornada de amadurecimento. Quando os dois se unem a Bear (Stefania LaVie Owen), a adolescente revoltada e líder de uma armada de jovens vestidos de animais, a coisa fica melhor ainda, com uma dinâmica mais divertida já que ela odeia adultos e quer proteger Gus de todo jeito, sempre desconfiando de Jepperd, mas ela própria começando a entender que nem tudo é branco ou preto. A trinca, apesar de suas brigas e desentendimentos, forma a alma de Sweet Tooth que, aliás, é o apelido de Jepperd para Gus, por ele ser basicamente viciado em doces, funcionando tanto juntos quanto separados e com a temporada oferecendo boas histórias pregressas para cada um que vão sendo reveladas em capítulos específicos, sem que os flashbacks pesem demais na narrativa.

Paralelamente à saga de Gus, Jepperd e Bear, acompanhamos, sempre com a saborosa narração James Brolin abrindo e fechando os episódios, as histórias separadas do médico Aditya Singh (Adeel Akhtar) e da terapeuta Aimee Eden (Dania Ramirez), ambas desde o começo da pandemia, com o primeiro, no presente, vivendo em uma comunidade fechada em constante vigília por sua mulher contaminada e a segunda em uma zoológico abandonado que ela converte em abrigo para crianças híbridas. A inclusão da primeira história dando um rico passado ao Dr. Singh que, nos quadrinhos, já nos é apresentado como uma espécie de Mengele desse universo, conversa bem com a busca por uma cura e os horrores que são em tese necessários para que ela seja possível. Eden, por seu turno, é uma personagem inédita, criada para a série, e lida com o exato oposto de Singh, ou seja, com o lado humano de aceitação de braços abertos e sem reservas do diferente.

E, lógico, por trás de tudo, há as forças do mal, aqui representadas pelo barbudo General Abbot (Neil Sandilands em uma performance caricata, mas sinistra) e seus Últimos Homens, força paramilitar que basicamente dita as leis do que sobrou dos EUA e que caça híbridos para que eles possam servir de cobaias em experimentos para se achar a cura e salvar a humanidade. Abbot, de todos os personagens relevantes da série, é o único que não ganha qualquer construção ou desenvolvimento. Ele é, pura e simplesmente, a maldade encarnada e a maldade não precisa de contexto, não precisa de explicação e muito menos de justificativa. Ela apenas é e a figura estranha do personagem, como um Darth Vader, acompanhada por uma trilha sonora militarística, eficientemente passa essa impressão de um monstro imparável.

Mas não se enganem. Apesar de a série contar com uma fotografia majoritariamente diurna, com paisagens neozelandesas belíssimas, ela conta uma história que nasce da intolerância, incompreensão, hubris e violência humanas. Mickle e Schwartz apenas elegeram não mostrar tudo nos seus mínimos detalhes, deixando a violência sempre imediatamente fora das beiradas dos enquadramentos de forma a deixar a imaginação correr solta, algo que sequer é tão necessário já que o mero fato de crianças serem usadas em experiências já deveria ser o suficiente para deixar qualquer um revoltado. Aliás, retornando brevemente aos quadrinhos, até mesmo Lemire é comedido na violência que ele poderia eleger mostrar, preferindo fazer recortes pequenos dos horrores que esconde e a série só vai um ou dois passos além, tornando a obra mais universal, mas não menos poderosa.

Em termos visuais, o que mais incomoda é quando outros híbridos são apresentados, com a mistura de CGI, animatrônicos e maquiagem prática falhando com força, ainda que isso não seja um problema muito saliente já que Gus e Wendy, a menina porca (Naledi Murray), são os únicos dois que realmente aparecem na série, ambos com efeitos convincentes. Os demais fazem apenas figuração, com Bobby, o menino toupeira, tendo um pouco mais de destaque, o que é suficiente para criar um gigantesco vale da estranheza, mas que, se respirarmos fundo e tivermos boa vontade, acaba passando (ou quase). Se, em temporadas futuras, os demais híbridos passarem a ter destaque, fica a torcida para que esse aspecto melhore significativamente para não prejudicar a imersão na história.

Sweet Tooth é, diria, um belo exemplar de como se fazer uma adaptação de quadrinhos para o audiovisual. No lugar de ficar escravizado pelo material fonte (ou, pior ainda, pelos anseios dos chamados fãs), os showrunners tiveram a coragem e a sensibilidade de criar sua própria e fascinante história que tem voz independente sem jamais perder a essência do que Lemire escreveu. O apocalipse nem sempre precisa ser retratado como terras devastadas povoadas por humanos, mutantes ou zumbis violentos em que a esperança não mais existe. Aliás, isso já cansou até. Há espaço para um olhar positivo, para uma pegada na linha das fábulas coloridas e alegres que conhecemos – e que são versões de fábulas tenebrosas e tristes, não se esqueçam – mesmo em situações limítrofes como a retratada. Resta agora apenas torcer para que o Netflix perceba o valor do que tem em mãos e não acabe com a jornada de amadurecimento de Gus antes do tempo.

Sweet Tooth – 1ª Temporada (EUA, 04 de junho de 2021)
Desenvolvimento: Jim Mickle (baseado em obra de Jeff Lemire)
Showrunners: Jim Mickle, Beth Schwartz
Direção: Jim Mickle, Alexis Ostrander, Toa Fraser, Robyn Grace
Roteiro: Jim Mickle, Beth Schwartz, Michael R. Perry, Justin Boyd, Haley Harris, Christina Ham, Noah Griffith, Daniel Stewart
Elenco: Christian Convery, Nonso Anozie, Adeel Akhtar, Stefania LaVie Owen, Dania Ramirez, Aliza Vellani, James Brolin, Will Forte, Sarah Peirse, Neil Sandilands, Naledi Murray, Amy Seimetz
Duração: 364 min. (oito episódios)

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