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Crítica | Sutura – 1ª Temporada

Um drama médico excepcional com doses generosas de suspense e personagens devidamente desenvolvidos.

por Leonardo Campos
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Na seara dos dramas médicos, diante de tantas inserções nas duas últimas décadas nesse tipo narrativo seriado, quase não há espaço para inovação. Transplantes, situações caóticas no atendimento de emergência, crise de corrupção nos espaços hospitalares, conflitos entre médicos e pacientes, dentre tantos outros tópicos dramáticos, já foram demasiadamente utilizados no âmbito da ficção, mas ainda assim, há interesse constante do público no segmento em questão. Diante do exposto, me questionei antes de começar a primeira temporada de Sutura: o que essa série brasileira consegue trazer de diferencial em relação a tudo que já está estabelecido em outros programas do mesmo ramo? A pergunta foi respondida logo após o desfecho do primeiro episódio: muita coisa. Doses generosas de suspense, cálculo devidamente equacionado da tensão, personagens esféricos e distanciamento de alguns padrões novelísticos vulgares para dar espaço ao denso e intenso cotidiano de dois médicos, em posições sociais diferentes, alijados de suas condições contratuais, tendo em vista a obrigatoriedade de trabalhar para a criminalidade em prol da manutenção de suas vidas. É assim que a produção se desenvolve ao longo de seus oito episódios eletrizantes, de 50 minutos em média, um excelente trabalho de composição dramática, tecido por Fábio Montanari, criador que precisou aguardar mais de uma década para que o seu projeto saísse do papel e ganhasse forma. Pelo visto, foi bom esperar, pois o resultado é surpreendente. Ficção de primeira linha. Das linhas de diálogos aos perfis dos personagens.

Para o realizador, a série possui DNA brasileiro, mesmo que a sua produção tenha sido pensada em língua inglesa. O projeto, na verdade, é ramificação de um concurso de dramaturgia, escrito em 2013, formatado em 2015 e só transformado em audiovisual por agora. As velhas e exaustivas questões ligadas ao processo de produção cultural no Brasil. Com direção geral de Diego Martins e Jéssica Queiroz, Sutura foi estruturada com base em um meticuloso processo de investigação. Montanari entrevistou uma média de sessenta médicos, diversos jornalistas da área criminalista, esteve com sociólogos e estudiosos sobre crimes, para adensar mais o roteiro de sua narrativa, assegurando realismo diante da necessidade do espectador suspender rapidamente a descrença em algumas passagens para a perspectiva do entretenimento entrar em pleno funcionamento. Com traços de outras séries criminais, o programa emula elementos que deram certo em outras jornadas ficcionais, mas cria o seu próprio universo.

Na trama, Ícaro (Humberto Morais) e a Dra. Mancini (Claudia Abreu) vivem na linha tênue entre a ética e a sobrevivência. Ele é um jovem de origem humilde, que conseguiu passar em primeiro lugar para começar os seus trabalhos numa residência médica situada em um dos hospitais mais renomados da cidade. Essa questão incomoda alguns dos outros colegas, de posições privilegiadas, mas desprovidos do mesmo resultado no processo classificatório em questão. Mas, como nada vem fácil para quem vem da periferia, o jovem precisa acertar as suas contas com a instituição de ensino onde se formou, para que assim, tenha o seu CRM e possa trabalhar dentro da lei. O grande conflito nesse processo é a sua completa falta de grana para resolver o esquema. Ele, grande admirador de Mancini, vê na oportunidade de atuar com a cirurgiã, um grande passo para a sua carreira. Mas os problemas se estabelecem logo. Mentalmente pressionado por um antigo amigo de jornada na juventude pobre de onde veio, Ícaro acaba atendendo ilegalmente algumas pessoas do mundo do crime no necrotério do hospital.

Não demora, Dra. Mancini também é levada ao lugar. Agora, ambos dividem conflitos semelhantes, ele numa posição bem mais comprometedora, mas ela dominada pelo nervosismo ao ter que assumir que a sua carreira anda em risco, pois os tremores nas mãos, originados de uma situação traumática que vai se delineando por meio de flashbacks que nos explicam como todos os personagens chegaram naquela situação sufocante. Assim, tendo que equilibrar a supervisão da residência com os atendimentos ilegais que se proliferam a cada instante, o jovem médico se coloca constantemente em risco, causando desconfiança nos demais residentes, bem como em outras pessoas que gravitam em torno de sua vida pessoal e profissional. O ambiente hospitalar, por sinal, um espaço de rotineiras situações de forte tensão, também é evidenciado quando a dupla se encontra na superfície, disfarçando-se do que cometem nas zonas abissais de um complexo gigantesco, mas todo monitorado por câmeras e por pessoas que não torcem pela recuperação de Mancini, tampouco pelo sucesso de quem mais possui obstáculos: Ícaro.

Há a direção corrupta, os egos em conflito, os momentos de calmaria (menos frequentes) em paralelo aos momentos de intensidade (mais constantes), o driblar dos curiosos, a postura impiedosa e pouco paciente dos chefes do crime, ameaçadores rotineiros da dupla de médicos, dentre outros tantos elementos que fazem desse primeiro bloco de episódios de Sutura um drama que vai além das abordagens estereotipadas das narrativas médicas, numa reversão de fórmula que torna o desenvolvimento empolgante o tempo inteiro. Purgamos com as dores psicológicas enfrentadas por Ícaro, compreendemos brevemente as motivações para Mancini ter se transformado numa mulher destemida, mas de comportamento complexo, difícil de lidar com o outro, além do entendimento sobre as ações e reações que levam tais personagens a caírem numa armadilha de desprendimento complicado. Eduardo Piagge, na direção de fotografia, Mariana Rocha, na condução musical, e Marghe Pennacchi, no design de produção, permitem que cenários, iluminação, enquadramentos e movimentos, todos sincronizados com a boa textura percussiva, possam assegurar eficiência narrativa e assertividade estética para a série.

Que uma segunda temporada seja produzida em tom de urgência, tal como o cotidiano dos protagonistas.

Sutura: 1ª Temporada (Brasil/2024)
Criação: Fábio Montanari
Direção: Diego Martins, Jessica Queiroz
Roteiro: Fábio Montanari, Santiago Roncagliolo, Marcelo Montenegro, Donna Oliveira, Victor Rodrigues
Elenco: Claudia Abreu, Humberto Morais, Juliana Paiva, Danilo Mesquita, Gabriel Braga Nunes, Naruna Costa,  Yara de Novaes, Lara Tremouroux, Leopoldo Pacheco, Elzio Vieira, Rejane Farias
Duração: 08 episódios (50 min. cada)

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