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Crítica | Suspeita

por Ritter Fan
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Quando Alfred Hitchcock mudou-se para os Estados Unidos em 1939, ele começou uma impressionante carreira de muitos acertos. Com Rebecca, seu primeiro filme em solo ianque, ele foi indicado a “meros” 11 Oscars, levando os de filme e fotografia. Em seguida, com Correspondente Estrangeiro, ele foi indicado a mais seis Oscars, mas não amealhou nenhum. Seu terceiro filme, sua única comédia de verdade, Um Casal do Barulho (esse título “sessão da tarde” é ruim demais…), foi um grande sucesso de bilheteria em 1941 e passou a década de 40 sendo adaptado algumas vezes para o rádio e uma vez para o teatro, tamanha sua fama.

Assim, o diretor já tinha uma enorme bagagem de sucessos em território americano e podia se dar ao luxo de escolher seus roteiros e foi o que ele fez com Suspeita, baseado em romance de Anthony Berkeley, escrito a seis mãos, duas delas de sua esposa, Alma Reville, e companheira por toda a vida e peça fundamental para seu sucesso. Assim como no caso de Rebecca, apesar da produção ser americana, Suspeita é tipicamente um suspense britânico, carregado da tensão e das reviravoltas que marcariam a carreira do (ainda em formação) Mestre do Suspense, passado na Inglaterra e contando até com a presença de uma dama e um cavaleiro da Ordem Britânica no elenco (Sir Cedric Hardwicke e Dame May Whitty). A fita também marca a volta de Joan Fontaine a um filme do diretor e a primeira parceria dele com Cary Grant, que geraria outras três grandes obras até 1959.

A narrativa começa bruscamente, sem nenhum tipo de explicação ou tempo para respirar, com o mulherengo Johnnie (Grant) dividindo um vagão da 1ª classe de um trem com a solteirona Lina (Fontaine), mas entregando ao conferente um tíquete de 3ª classe. Ele tanto faz que acaba conseguindo ficar no vagão e olhares são trocados. Sem perder tempo, um romance primeiro platônico se inicia e, depois, vem algo mais sério, resultando no casamento dos dois. Acontece que Johnnie é um salafrário mentiroso, o típico “171”, algo que fica claro desde a sequência no trem, mas Lina, perdidamente apaixonada, acaba tendo que lidar com os vícios de seu marido, o mais importante deles sendo uma certa ojeriza a qualquer coisa que se relacione a “trabalho”.

Os imbróglios em que Johnnie se mete vão se aprofundando e nós, espectadores, vendo o que está acontecendo por intermédio unicamente dos olhos de Lina, ficamos desesperados e torcemos pela heroína, ainda que entendamos que ela não pode simplesmente largá-lo, pois há amor no meio. Resta saber se ele no mínimo é correspondido.

Hitchcock usa todos os truques que conhece para despistar o espectador, fazendo como um mágico faz ao subir no palco. Poucos personagens coadjuvantes são introduzidos: apenas o pai e a mãe de Lina (o cavaleiro e a dama da Ordem Britânica), Beaky (Nigel Bruce), um amigo/cúmplice de Johnny e Isobel (Auriol Lee), uma amiga de Lina e escritora de romances policiais. Com isso, ele tem tempo de trabalhar a excelente química existente entre Grant e Fontaine, unindo e separando o casal com as mais diversas situações suspeitas. Quando Beaky finalmente entra na trama no segundo ato e funciona como peça-chave para o terceiro, Hitchcock consegue usar a narrativa de forma que ele seja um elemento importante para o andamento da obra e não alguém que está lá para preencher a tela. Com Beaky, por exemplo, Hitchcock usa jogos de tabuleiro para criar pistas visuais (nada discretas, aliás) e para contrastar a esperteza de Johnny com a aparente inocência de Beaky.

A trilha sonora também é fundamental para a criação do suspense, como Hitchcock mesmo faria de maneira quase que insuperável em Psicose.  Usando Wiener Blut, valsa de Strauss, como tema constante para o casal, ele manobra a composição, alterando seu tempo e seu arranjo para passar sentimentos completamente diferentes, como alegria, tensão e tristeza. Franz Waxman (que viria a trabalhar em Janela Indiscreta) compõe o resto da premiada trilha original, com notas fortes e eletrizantes quando a narrativa exige, mas sem uma qualidade marcante, que realmente deixe uma impressão duradoura.

Hitchcock, porém, mesmo com um material fonte interessante para trabalhar e que ele torna ainda mais interessante em filme, acaba errando com a utilização de Isobel. Apesar da personagem ser introduzida razoavelmente cedo na estrutura da obra, ela ganha uma desproporcional atenção no terço final, algo que não é nem esperado e muito menos orgânico para o desfecho, ainda que importante. Parece até que algo foi “perdido” na mesa de montagem, assim como acontece com a brusquidão do início da fita, que nos joga os personagens no colo de forma pouco ortodoxa.

Mas Suspeita funciona muito bem apesar de seus problemas aqui e ali. A manutenção do suspense por Hitchcock literalmente até os segundos finais do filme e as excelentes atuações do atores principais fazem da quarta empreitada do diretor em solo americano uma delícia de diversão, com um charme irresistível. Não à toa, ele concorreu a três Oscars, de melhor filme (a terceira indicação consecutiva de um filme de Hitchcock nessa categoria), trilha sonora e melhor atriz, levando o de atriz (Fontaine), a única vez em que um ator em obra do Mestre do Suspense ganharia esse prêmio. Nada mal para um britânico perdido no Novo Mundo, não é mesmo?

  • Crítica originalmente publicada em 28 de fevereiro de 2014. Revisada para republicação em 11/02/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do Mestre do Suspense e da elaboração de uma versão definitiva do Especial do diretor aqui no Plano Crítico.

Suspeita (Suspicion, EUA – 1941)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Samson Raphaelson, Joan Harrison, Alma Reville (baseado em romance de Anthony Berkeley)
Elenco: Cary Grant, Joan Fontaine, Cedric Hardwicke, Nigel Bruce, Dame May Whitty, Isabel Jeans, Heather Angel, Auriol Lee, Reginald Sheffield, Leo G. Carroll
Duração: 99 min.

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