Fritz Lang encerra sua passagem no cinema norte-americano promovendo uma antítese temática ao que mais explorou nesse período, justamente para confirmar a ideia de relatividade na “justiça” humana. Se anteriormente o cineasta alemão pavimentava em suas narrativas clássicas da era de ouro hollywoodiana, em histórias de um homem injustiçado por um crime que não cometeu precisando fugir do estado com sua amada para não ser executado , aqui em Suplício de uma Alma, a narrativa coloca esse “mesmo” tipo de homem para deferir o sistema penitenciário frente a frente, antes de precisar fugir, implementando evidências falsas para comprovar o caráter falho da aplicação da lei, e consequentemente, da falsa implementação de justiça por trás da pena de morte.
No entanto, a discussão do filme nem está exatamente no direito do estado em decidir quem deve ou não perder a vida, ela é apenas a premissa do real experimento social da narrativa: evidenciar a construção de verdades por julgamento moral inerte de todo ser humano. Apesar de ser um tanto absurdo o personagem de Sidney Blackmer comprar tão rapidamente a ideia do seu genro (Dana Andrews) e se dispor ainda de cobaia a condenação à morte, tendo várias coisas a perder no caminho, como a confiança da recém-esposa e uma boa condição de vida, além de riscos do plano dar errado, Lang consegue vender o motivacional e a solução da ação de prontidão, a ponto de desviar subterfúgios, possíveis conflitos importantes a serem gerados no roteiro, como a busca do verdadeiro assassino da bailarina, desviado propositalmente.
Sabemos da verdade parcial, ou seja, não passa de uma armação de Austin (Sidney) e Tom (Andrews), a tensão, ganha um caráter revés, o que soa contraditório no princípio, mas depois faz total sentido diante das reviravoltas da história. Ficamos muito mais instigados em saber como os personagens irão convencer da “mentira” que estão contando como verdade, do que preocupados com as consequências de descobrirem que está “verdade” é mentirosa, sendo que deveria ser o contrário, pensando que o objetivo deles é chegar nessas consequências para expor a fragilidade judiciaria. Essa estranheza levantada também é proposital, pois a partir da primeira virada, as noções de verdade e mentira serão mescladas e a linha tênue de moralidade entre as duas passa a ser bem curta.
SPOILERS!
No momento em que Tom morre e as provas verdadeiras da mentira são incendiadas no carro, a pragmática da justiça na criação de culpabilidade, julgada como errônea pelo que o texto promovia, passa a ser inevitável, ou seja, de certo modo, correta naquele contexto. Afinal, não havia para onde escapar, uma nova verdade aconteceu que encaixou perfeitamente na verdade “criada”, tornando-a uma verdade jurídica. Contudo, se isso comprovaria a fragilidade do sistema criticado, de maneira igualmente subversiva, o filme coloca Austin como o verdadeiro assassino, evidenciando que a fragilidade está no humano, no “homem”, e não, somente no sistema.
FIM DOS SPOILERS!
Apesar de não assinar o roteiro, Lang nas entrelinhas da elaboração da imagem, assim como Austin, reescreve o real para o benefício da narrativa que quer contar em Suplício de uma Alma. Não atoa, a desculpa do personagem principal em topar os riscos do experimento inicialmente era por conta da inspiração criativa, uma pequena ponte metalinguística a dar verossimilhança a manipulação assumidamente instável e coincidente das reviravoltas, absolutamente frustrantes por ir de encontro ao que a construção emocional inicialmente implementava, mas eficientes em provar o ponto de que nós estamos acomodados em acreditar na primeira aparência dita como verdade.
Suplício de uma Alma (Beyond a Reasonable Doubt | EUA, 1956)
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Douglas Morrow
Elenco: Dana Andrews, Joan Fontaine, Sidney Blackmer, Arthur Franz, Philip Bourneuf, Edward Binns, Shepperd Strudwick, Robin Raymond, Barbara Nichols, William F. Leicester, Dan Seymour, Rusty Lane, Joyce Taylor, Carleton Young
Duração: 80 min.