“Me lembro de meu pai, sempre paciente quando semeávamos a terra juntos. ‘É fácil’, ele dizia. ‘Espalhe só algumas sementes de cada vez. Distribua igualmente nos sulcos. Deixe espaço entre elas’. Meu pai sabia que nem todas vingariam, mas queria dar a cada uma a chance de crescer.”
Contém spoilers.
É impossível pensar em outro super-herói representante de ideais – para muitos perdidos – de esperança, paz, e demais virtudes sobre-humanas senão o próprio Superman. Em muitas mídias, o personagem é um ícone de altruísmo e bondade, rendendo, na maioria delas, narrativas muito bem pensadas, que, no caso de Paz na Terra, argumentam sobre o caminho para um mundo melhor. Em uma sociedade na qual privilégio é visto como mérito e justiça é vista como privilégio, a estrada a ser trilhada para a paz – não necessariamente uma perfeição paradisíaca, apenas nos conformes do que é justo e do que não é – ainda é extremamente tortuosa, até mesmo para o homem que tinha tudo.
Deve-se lembrar que os códigos internos do Batman, a responsabilidade do Homem-Aranha, os princípios do Capitão América são todos caracterizadores muito mais importantes para a construção de seus mitos, do que os seus devidos superpoderes. Afinal, é muito mais relevante para a fortificação da lenda construída ver o Homem-Aranha levantar escombros gigantes para conseguir levar um remédio para a tia May, do que ver o personagem enfrentando 12 de seus maiores vilões ao mesmo tempo. Portanto, não esperem ver o Superman confrontando toda a sua galeria de vilões de uma só vez. Os vilões desta história são mais frágeis, mesmo que não menos poderosos e perigosos.
Em Paz na Terra, o leitor é convidado a sair do ambiente de confrontos estratosféricos e feixes de luzes partindo do céu, e adentrar em um estudo deveras importante não só do papel do super-herói, como do próprio homem, o qual, em antítese aos salvadores que, infelizmente, nunca virão, cria barreiras para si mesmo, fomentando injustiças e miséria. O Homem do Amanhã, enfim, decide deixar supervilões de lado, e enfrentar os inimigos mundanos, em um choque de realidades, entre a sua e a do resto do mundo.
Sendo assim, a fome, uma das problemáticas mais cruéis e principal foco narrativo de Paz na Terra, acaba por ser talvez o maior desafio para o Superman. O mais importante é como o argumento guia a ideia da fome para um ponto mais pertinente do que o senso comum de que o que acontece no mundo é falta de comida; baixa produtividade. Superman encontra-se confrontado com desigualdades enraizadas em diversas sociedades, muitas vezes sustentadas por déspotas e corruptos. Há uma clara identificação do leitor brasileiro com a representação do Rio de Janeiro, um belíssimo – e contraditório – cenário para o personagem levar os navios carregados com alimentos.
Com o intuito de aproximar o leitor do intrínseco do Superman, Paul Dini expõe os pensamentos do herói constantemente, não por meio da verborragia, mas por meio de reflexões subjetivas. A utilização do história de Clark Kent com seu pai é muito bem contextualizada e pincelada, dando mais embasamento aos pensamentos humanitários que o herói carrega. Pensamentos além da sua aura majestosa – do cerne de seu caráter, relacionados à algo mais humano, possível de ser repassado de pais para filhos. O roteiro tem objetivos claros no discurso que quer fazer sobre desigualdades, e o herói é perfeitamente encaixado como interlocutor da mensagem. É um trabalho reflexivo, crítico, que propõe perguntas, e argumenta respostas, sem soar didático. Uma dissertação sobre os obstáculos que distanciam o presente da utopia que almejamos.
Para isso, Dini conta com a parceria de Alex Ross, um dos maiores artistas envolvidos com quadrinhos. O traço irretocável do quadrinista torna todos os seus personagens, por mais míticos, cartunescos e extraordinários que sejam, palpáveis; realistas. Para os olhos do leitor, Superman existe, e uma cueca por cima da calça não fica nenhum pouco anormal. Muito pelo contrário, tão peculiar quanto as próprias qualidades endeusadas do Azulão. Um espetáculo visual contemplar cada mínimo detalhe da pintura feita por Ross. Cada página é digna de ser emoldurada. As splash-pages são, como sempre, maravilhosas. Somos repetidamente (no bom sentido) brindados com várias imagens, quase fotográficas, de feitos messiânicas do maior super-herói de todos os tempos. Um homem, ou super-homem, que na realidade difícil e pé no chão da crua esfera real que vivemos, escassa de esperança, nunca existirá.
De fato ainda estamos em um ambiente no qual um homem trajando as cores da bandeira dos Estados Unidos presume ser capaz de salvar todo o resto do mundo. Nas mãos erradas, e com o personagem errado, talvez estivéssemos testemunhando uma vanglorização estadunidense, mas esse não é o caso. Mesmo com um monólogo final longe do potencial da obra, Dini disserta quase-perfeitamente sobre a necessidade de igualdade de oportunidades, de combate à fome, de desestruturar governos e organizações corruptas, sem denotar prepotência. No texto de Paul Dini e nos traços de Alex Ross, Superman é genuinamente altruísta. Todavia, sem conseguir ser a salvação de todos os problemas que assolam a humanidade, o Superman nunca deixará de ser um símbolo da mais importante das abstrações: um símbolo de esperança.