É inevitável. De tempos em tempos, os grandes personagens das editoras mainstream ganham novas “origens definitivas”, com cada novo roteirista emprestando sua pegada às histórias ou acrescentando elementos novos, por vezes até alterando-as profundamente. Dentre vários outros autores, Frank Miller fez isso, com enorme sucesso, com o Batman e com o Demolidor nos anos 80 e 90, nos já clássicos Ano Um e O Homem Sem Medo. Chega a ser alvissareiro, portanto, que, pelo menos na primeira edição da aguardadíssima Superman: Ano Um, o próprio Miller, já no crepúsculo de sua carreira, depois dos medíocres Cavaleiro das Trevas III e Xerxes, tenha resistido à tentação de mexer nas raízes do Azulão. Mas essa alegria, infelizmente, é passageira.
Parte da iniciativa DC Black Label, que não é muito mais do que uma jogada de marketing da DC Comics, com títulos supostamente mais adultos e publicados em formatão levemente menos retangular que o normal, a primeira (de três) edição de Superman: Ano Um, que ganhou o título portentoso de Livro Um é, sem querer ficar procurando expressões mais simpáticas, um convite ao sono. Uma coisa é não mexer na origem do Superman, algo positivo como afirmei mais acima; outra coisa bem diferente é não tentar sequer uma coisinha diferente que faça sentido. As 67 páginas de história nos leva da destruição de Krypton pelo ponto-de-vista do bebê Kal-El, até o final da adolescência de Clark Kent. Entre uma coisa e outra, temos a obrigatória abordagem do bullying escolar (bocejo…) e do romance dele com Lana Lang (bocejo duplo…) em uma narrativa que não sai do lugar e poderia ter sido contada em duas páginas. E, de bônus, Miller então vem com suas duas inclusões “geniais”: (1) os únicos quadros dedicados exclusivamente à Lana Lang a colocam como vítima de tentativa de estupro que precisa ser salva por Kent (sério, Miller, não tinha nada mais clichê e machista para justificar o Black Label não?) e (2) Clark Kent decide alistar-se na Marinha(!!!). Não preciso dizer mais nada, não é mesmo?
Mas vou dizer mesmo assim. Definitivamente, Frank Miller perdeu toda sua verve narrativa, verve essa que criou o Wolverine definitivo em 1982, chacoalhou profundamente o status quo do Demolidor no final dos anos 70 até meados dos anos 80, revitalizou o Batman em 1986, estabeleceu um novo patamar para a violência gráfica estilizada com sua série de graphic novels Sin City e assim por diante. O roteirista e desenhista, hoje, é apenas uma sombra do que foi e é triste vê-lo decair assim. E olha que Superman: Ano Um nem é esse horror todo que meus comentários fazem parecer, mas é uma obra desnecessária, supérflua, que não faz jus nem a Miller e nem ao Superman. É, apenas, uma criação burocrática e esquecível que não tem sequer uma linha de diálogo interessante ou um momento de ação que não tenhamos visto de maneira mais eficiente em um zilhão de outras publicações. De positivo mesmo é que o Clark Kent que vemos aqui é, com exceção do alistamento militar, o classicão mesmo, que poderia muito bem ter sido escrito na Era de Prata, talvez até na Era de Ouro, sem tentar torná-lo sombrio como é moda hoje em dia.
E a arte de John Romita, Jr. simplesmente não ajuda. Sempre tive minhas reticências com ele, mas reconheço seus grandes momentos, um deles inclusive já citado aqui – O Homem Sem Medo – exatamente em parceria com Miller em uma história de origem realmente definitiva e importante. Em Superman: Ano Um, Romitinha, talvez em razão do roteiro “chuchu sem sal” de Miller, não tenha tido inspiração suficiente para fazer algo artisticamente relevante. Em outras palavras, no lugar de compensar os problemas do roteiro, ele só os agrava. Usando uma estrutura padrão de cinco ou mais quadros por página, o artista não deixa muito espaço para os textos desnecessariamente alongados de Miller, o que acaba resultando em poluição visual que detrai de praticamente todas as sequências de ação. E, falando nelas, eu deveria ter usado aspas, pois “ação” é muito relativo aqui já que Romitinha desenha a mesma coisa dezenas de vezes, mantendo-se em closes ou planos médios dos personagens, sem tentar nada diferente ou minimamente excitante, por vezes até desperdiçando bons momentos em prol de uma abordagem mais contemplativa para o futuro herói.
Como se isso não bastasse, o conhecido estilo do artista em trabalhar corpos levemente deformados acabou transformando essa primeira edição em um desfile de bonecas e bonecos Polly Pocket: corpinhos magrinhos com cabeções bobble head. E isso não acontece apenas às vezes como na maioria de suas artes (e raramente quando ele está realmente inspirado), mas sim em todas as páginas, independente das idades e das características próprias dos personagens, o que me levou a risadas involuntárias completamente inevitáveis.
Essa “origem definitiva” do Superman está mais para a “origem sonolenta” dele. A não ser que nas próximas duas edições tudo mude radicalmente, será complicado não bater cabeça durante a leitura desse marasmo enrolador que não sai do lugar e, quando sai, erra feio…
Superman: Ano Um – Livro Um (Superman: Year One – Book One, EUA – 2019)
Roteiro: Frank Miller, John Romita Jr.
Arte: Frank Miller, John Romita Jr.
Arte-final: Danny Miki
Cores: Alex Sinclair
Letras: John Workman
Editora original: DC Comics (DC Black Label)
Data original de publicação: 19 de junho de 2019
Páginas: 67