Conheci a parceria do prolífico roteirista Tom King com a brasileira Bilquis Evely pelo segundo trabalho deles juntos, Helen de Wyndhorn, publicado ao longo de 2024. Com uma história de capa e espada com elementos de As Crônicas de Nárnia, a saga da personagem do título já era cativante de imediato, mas foram as deslumbrantes artes de Evely, com as cores vibrantes do também brasileiro Matheus “Mat” Lopes, que me fizeram cair da cadeira a cada página que eu virava. Quando acabei a leitura (a terceira, na verdade), não tive nenhuma dúvida de que eu simplesmente precisava ler o resultado da primeira reunião dos dois, Supergirl: Mulher do Amanhã que, descobri em seguida, também contou com Mat Lopes e, como se isso não bastasse, também Clayton Cowles nas letras, ou seja o time artístico completo.
Minha hesitação em começar pela heroína prima do Superman é que nunca fui o maior fã do mundo da família “Super” e a preguiça reinou. Helen de Wyndhorn era personagem inédito, com as edições publicadas pela Dark Horse Comics, o que, para mim, era imediatamente mais atraente. Mas, como disse, eu simplesmente precisava ler a graphic novel da Supergirl de King e Evely e assim eu o fiz, logo percebendo que a conversa bem próxima entre as das HQs, já que ambas transitam no gênero capa e espada, ainda que Supergirl: Mulher do Amanhã também tenha um ainda mais forte viés de ficção científica. Como uma história de Supergirl pode ser de capa e espada e também de ficção científica em um recorte completamente autocontido é o que o talento de Tom King consegue fazer sem firulas e a magia artística de Bilquis Evely consegue transpor para páginas absolutamente arrebatadoras.
Em sua superfície, trata-se de uma história simples em que Supergirl, comemorando somente com Krypto seu aniversário em um planeta não muito tecnológico que orbita um sol vermelho, é “contratada” pela jovem local Ruthye Marye Knoll para que ela vingue o assassinato de seu pai pelo misterioso, insensível e violento Krem das Colinas Amarelas. Abaixo dessa superfície, King faz um amplo estudo sobre a moralidade do assassinato e da própria vingança, sobre como o trauma pode nos afetar, sobre um universo que não liga para nossos desejos, sobre a amizade entre duas mulheres muito diferentes e sobre o quanto é importante lutar para evitar que a violência nos defina. E tudo isso com o roteirista basicamente redefinindo Kara Zor-El como uma heroína que, apesar de comumente ficar à sombra do Superman, perdeu seu mundo duas vezes, diferente de Kal-El que jamais conheceu seu planeta original, enfocando a tragédia da jovem heroína como seus elementos formativos.
E o que começa como algo aparentemente pequeno, em apenas um planeta menos desenvolvido, logo é transformado em uma vasta ópera espacial com Kara e Ruthye usando “transporte espacial público” – sempre em razão de sóis vermelhos que põe em xeque os poderes da kryptoniana, algo narrativamente necessário e, diria, inevitável – para transitar de planeta em planeta atrás de Krem que, ao que tudo indica, reuniu-se a piratas genocidas para destruir civilizações inteiras por onde passam. Narrado por uma Ruthye já anciã na forma de lembranças de um passado remoto e usando um vocabulário rebuscado, quase shakespeareano, a progressão da história trabalha muito bem os temas que se propõe a desenvolver, ao mesmo tempo em que oferece amplo espaço para Evely simplesmente criar arte que merece uma observação cuidadosa, detalhada, sem que o leitor deseje simplesmente acabar a história correndo. Na verdade, como acontece com Helen de Wyndhorn, o melhor mesmo é ler pelo menos duas vezes, senão três, para ver desenhos no inconfundível estilo da artista e as impressionantes cores de Lopes lidando com fenômenos espaciais, planetas diversos, civilizações variadas e sequências de ação de proporções épicas, com uma Supergirl melancólica, pensativa, madura e inteligente que usa seus poderes sabiamente e que, no processo, cria conexões profundas com sua parceira que, por seu turno, também muda muito ao longo da aventura.
Mas é necessário ter atenção também ao texto de King, que não costuma escrever banalidades e que, aqui, certamente não o faz assim como não faze em Helen de Wyndhorn. A história de vingança e caçada espacial é apenas o verniz de uma abordagem profunda sobre os temas que mencionei antes e que reenquadram com força nossa expectativa do que é ser um super-herói, afastando-se da violência gratuita que vem tomando os quadrinhos mainstream desde os anos 80 e fazendo indagações relevantes que podem ser transpostos até mesmo para o estado da indústria. E, com o maravilhoso final que ele oferece – se eu já disse que era necessário atenção, redobro esse meu aviso quando se chega ao final -, King coroa sua abordagem feminina e feminista que lida com a reafirmação da mulher como independente de homens e a importância da recusa absoluta em deixar que o homem defina a mulher. Esse é o sumo que se extrai da leitura atenta da saga de King e Evely e é a principal lição que a dupla passa em sua obra.
Supergirl: Mulher do Amanhã, talvez tenha apenas um pequeno defeito, que é estender demais seu miolo, levando a situações repetitivas. Por outro lado, ao seguir por esse caminho, King abre mais espaço ainda para a arte de Evely e isso sempre será uma troca justa. Trata-se de uma graphic novel surpreendente, hipnotizante e indispensável para quem gosta de quadrinhos, de capa e espada e ficção científica, mesmo para aqueles que, como eu, não tem muito amor pela mitologia do Superman e seus derivados. Mal posso esperar para futuros novos trabalhos dessa dupla imbatível!
Supergirl: Mulher do Amanhã (Supergirl: Woman of Tomorrow – EUA, 2021/22)
Contendo: Supergirl: Woman of Tomorrow #1 a 8
Roteiro: Tom King
Arte: Bilquis Evely
Cores: Mat Lopes (Matheus Lopes)
Letras: Clayton Cowles
Editoria: Brittany Holzherr, Jamie S. Rich
Editora original: DC Comics
Data original de publicação: agosto a novembro de 2021; janeiro a abril de 2022
Editora no Brasil: Panini Comics
Data de publicação no Brasil (encardenado): agosto de 2022
Tradução: Erick Garcia
Páginas: 208