Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Summer of Soul (…ou, Quando A Revolução Não Pode Ser Televisionada)

Crítica | Summer of Soul (…ou, Quando A Revolução Não Pode Ser Televisionada)

A celebração de um registro histórico apagado.

por Iann Jeliel
579 views

É inacreditável pensar que as filmagens desse evento cultural único permaneceram engavetadas na história por mais de 50 anos e só ganharam luz do dia agora no documentário Summer of Soul. Diz muito sobre o racismo estrutural vigente da sociedade norte-americana, que quando não se apropria das conquistas da cultura negra as colocam no esquecimento histórico, reduzindo sua importância de alguma maneira. Foi o que ocorreu ao Harlem Cultural Festival, intrinsecamente comparado ao Woodstock (sendo denominado até como “Black Woodstock”) por ter ocorrido no mesmo ano e pelas similaridades em tamanho das atrações apresentadas gratuitamente a céu aberto para milhares de pessoas.

Ora, as forças dos dois como movimento cultural eram realmente compatíveis em apelo popular e presença de grandes artistas em ascensão – Stevie Wonder, B.B. King, Mahalia Jackson, Nina Simone, David Ruffin foram alguns dos gigantes que pisaram no festival. A diferença primordial é que o Harlem Cultural Festival celebraria a música através de implicações sociais da comunidade negra, muito incômodas para serem transmitidas abertamente num contexto de transição da mentalidade segregacionista estadunidense. No entanto, a proposta de Summer of Soul não visa investigar e/ou traçar questionamentos tão profundos acerca dos motivos que fizeram essas gravações ficarem tanto tempo no limbo. O percussionista Amir “Questlove” Thompson, responsável por dirigir o projeto, opta fundamentalmente em valorizar os registros inéditos e repercuti-los nas memórias de quem vivenciou o evento, sejam artistas, sejam o povo.

A montagem traz aqueles tradicionais entrecortes das imagens parafraseadas por cima de comentários emotivos dos entrevistados, mas com a particularidade de serem distribuídas no ritmo das canções, selecionadas a dedo para comunicarem implicitamente aquilo que, se abordado de outra maneira, fugiria do intuito celebrativo. Questlove acredita fielmente que as tomadas falam por si só… e realmente dizem. Seu trabalho consistia apenas em organizá-las de modo dinâmico, não só para caber em 120 minutos, como para imergir o telespectador naquela atmosfera, fazê-lo capturar a sinergia de cada apresentação de palco, quase teletransportando-o para o sentimento de estar vivendo aquilo “ao vivo”. Portanto, não é só um documentário de memória, como também de redescoberta, para instigar uma identificação daqueles que não o conheciam e/ou não tiveram a oportunidade de usufruir de seu impacto.

Lembra o que Peter Jackson fez em The Beatles – Get Back: Por mais que haja aqui um trabalho restauração  das imagens, tornando-as mais legíveis do que propriamente eram – além de uma reordenação não linear da sequência –, o diretor evita ao máximo interferir na riqueza do material original, selecionando “cortes” das sequências de músicas e colocando-as sempre na íntegra, deixando pelo menos uma canção para cada um dos músicos participantes, contemplando todos com suas importâncias particulares após a apresentação. Inclusive, é somente para esse sentido que é direcionado a contextualização mais informativa extracampo do documentário. Questlove renega quaisquer didatismos sobrepostos ao menos que fossem estritamente necessários, como era nesse caso, para ampliar a valorização cultural, argumentar a criação de legado do evento.

Não há nada realmente que não esteja mostrado nessas rodagens que precise ser mais mastigado ao público para conseguir ser comunicado. Minha curiosidade (falando fora de um lugar de fala), porém, não deixa de ter vontade de conhecer mais dos pormenores, das implicações políticas do festival a época – como alguns políticos brancos de Nova York utilizaram o apoio como ferramenta de eleição – ou de sentir falta do diálogo  entre os signos levantados pela conscientização da negritude refletida no agora. Mesmo que não fosse para aprofundar, creio que Summer of Soul poderia explorar mais esses pontos por fora e, ainda organicamente na proposta, até para cumprir mais com o compromisso de seu subtítulo “Ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Revolucionada”. De todo modo, o ineditismo do registro histórico compensa e a abertura orgulhosa está dada para um revisionismo da importância desse momento para o mundo. 

Summer of Soul (…ou, Quando A Revolução Não Pode Ser Televisionada) | Summer of Soul (…Or, When the Revolution Could Not Be Televised) – EUA, 2022
Direção: Questlove
Roteiro: Questlove
Elenco: Stevie Wonder, Lin-Manuel Miranda, Jesse Jackson, Chris Rock, Tony Lawrence, Nina Simone, B. B. King, Abbey Lincoln, Mavis Staples, Moms Mabley, Mahalia Jackson, David Ruffin, Sly Stone, Hugh Masekela, John V. Lindsay, Max Roach, Ray Barretto, Herbie Mann, Mongo Santamaría, Luis Miranda, Walter Cronkite, Malcolm X, Martin Luther King Jr., Robert F. Kennedy, Richard Nixon, John F. Kennedy, Jesse Jackson, Moms Mabley, Fidel Castro
Duração: 118 minutos.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais