No dia 05 de março de 2022, pouco mais de 106 anos depois de afundar no Mar de Weddell, na Antártica, e depois de diversas tentativas, o notório navio britânico Endurance foi finalmente achado em surpreendentemente bom estado de conservação. Essa descoberta impressionante me fez procurar algo que há décadas tinha curiosidade de conhecer: os diários de Sir Ernest Shackleton, capitão da Expedição Transantártica Imperial, de 1914 a 1917. Publicado originalmente em Londres, em 1919, a obra é o relato detalhado da fracassada expedição que, porém, não só trouxe à tona diversas observações científicas importantes sobre a região, como também é uma prova inafastável da resistência humana às adversidades, fazendo jus ao nome da embarcação.
Shackleton, aliás, é um dos grandes exemplos do quanto o fracasso não deve ser algo que nos desanima, que nos afasta de nossos objetivos. Muito ao contrário, o fracasso é a infraestrutura sólida a que devemos nos apoiar para construir e desenvolver nosso caráter e pautar a nossa vida. Arriscando-me a parecer autor de livro de autoajuda, gênero “literário” que desgosto profundamente, creio piamente que sim, devemos almejar o sucesso, mas só se tivermos a clareza de que poucos de nós realmente o alcançam e que é a derrota que nos faz ficar mais forte, é a queda que nos faz levantar e seguir adiante com mais vigor ainda do que na vez anterior.
E o expedicionário britânico sabia disso. Afinal, ele participara não como líder, mas como uma peça importante da Expedição Antártica Nacional Britânica, entre 1901 e 1904, cujo navio Discovery ficou preso no gelo por muito tempo e com resultados que ficaram no limiar do fracasso e como líder da Expedição Antárctica Britânica, de 1907 e 1909, que obteve sucesso a duras penas. Sem hesitar, quando de seu retorno à Londres, ele tratou de trabalhar na obtenção de fundos para uma terceira expedição (a segunda por ele liderada) cujos objetivos, porém, ficaram na pendência de outras que já havia sido providenciadas, com o sucesso da do norueguês Roald Amundsen, em 1912, frustrando a ideia original de ser o primeiro a alcançar o Polo Sul.
Mas os planos continuaram e foram reformulados para uma travessia transantártica com trenós a partir de dois pontos opostos da Antártica, um via o Mar de Weddell, com o comando direto de Shackleton no Endurance e partindo de Londres e o outro via o Mar de Ross, sob comando direto do Capitão Aeneas Mackintosh (hierarquicamente abaixo de Shackleton, porém) no navio Aurora e partindo da Austrália. O objetivo inicial de cada grupo era estabelecer bases no gelo da Antártica para usá-las como ponto de partida para as travessias em direções opostas, com o grupo do Mar de Ross oferecendo apoio ao grupo do Mar de Weddell.
O livro de Shackleton contando essa história é fascinante, mas muito desafiador. Seu material base foram suas anotações em seu diário de bordo, usando como material auxiliar os diários de outros oficiais para complementar suas observações. Há um excelente trabalho de editoração posterior feito provavelmente por ele e pela editoria original, para emprestar mais uniformidade aos textos e criar fluidez. Mesmo assim, porém, a obra resultante exige paciência do leitor que, como eu, não estiver acostumado com relatos dessa ordem. O desafio não está na complexidade inerente, vejam bem, pois, para minha surpresa, o texto não é repleto de jargões náuticos inescrutáveis que só tornariam a leitura tediosa ou lenta em razão da necessidade de se verificar definições, mas, ao contrário, ela repousa na estranha objetividade extrema de Shackleton, assim como sua abordagem de capitão e não de cientista da expedição (obviamente) que leva ao que pode parecer, em um primeiro momento, a uma visão simples demais do ocorrido inicialmente salpicadas por coordenadas náuticas demais (é importante, às vezes, conferi-las no mapa para acompanhar o caminho seguido).
No entanto, quando o ritmo é encontrado, quando o leitor finalmente “encontra” a voz de Shackleton lidando com todos os seus reveses de maneira aparentemente calma, preocupado, em primeiro lugar, com sua tripulação e capaz dos maiores feitos heroicos com o objetivo de chegar à civilização depois que o Endurance fica preso no gelo do Mar de Weddell para nunca mais sair – a expedição sequer começou a parte da travessia da Antártica com trenós, ficando grande parte do tempo presa na Ilha Elefante! – o livro começa a ficar realmente muito interessante, como a leitura de um diário particularmente cuidadoso e muito bem escrito. Como o “fim” é revelado logo no começo pelo autor, a leitura é inescapavelmente melancólica, mas surpreendentemente positiva mesmo diante dos gigantescos obstáculos encontrados ao longo do caminho.
Por não existir todo aquele floreio literário, não há, obviamente, desenvolvimento de personagens, de motivações ou de quaisquer outros elementos de um romance normal, pois o livro sequer pode ser categorizado como um romance, claro. Mesmo assim, Shackleton consegue transmitir o desespero das situações com que eles se deparam, o que por vezes pode afetar sensibilidades modernas, como por exemplo as várias descrições da matança de focas – e, depois, dos cachorros que eles levaram – para a alimentação da tripulação e um momento particularmente gráfico em que ele descreve quando ele e outros dois de seus mais valorosos tripulantes chegam na Ilha Geórgia do Sul e fazem um banquete de filhotes de albatroz em que até os suculentos e macios ossos em formação das aves são devorados por todos. Pela maneira como ele discorre sobre o prazer do momento – a primeira vez que eles comem algo que não seja gordura de focas em meses – é perfeitamente possível fechar os olhos e sentir o gosto do guisado quente na boca e, depois, descendo para aninhar-se em estômagos desesperadamente vazios.
O maior problema do livro é que, quando o relato de seu grupo chega ao fim, a obra “recomeça”, com Shackleton usando os diários da tripulação do grupo do Mar de Ross para reconstituir o périplo deles que, de certa forma, é um fracasso ainda maior do que o dele próprio. Novamente uso, aqui, comparações literárias que sei serem injustas, mas que, ao mesmo tempo, considero inevitáveis. Em uma obra literária pura, o autor do romance provavelmente trabalharia as duas narrativas simultaneamente, para evitar contar duas histórias muito semelhantes uma seguida a outra, o que cansa o leitor. Shackleton mesmo, aliás, poderia ter feito isso se assim tivesse querido, mas tenho para mim que o rigor de seu pensamento de capitão simplesmente o impediu de agir dessa forma, especialmente porque as fontes são bem diferentes, uma direta, vindo de suas próprias palavras e observações e outra de diversos diários de bordo do segundo grupo. Confesso que, quando o relato da tripulação do Aurora começou, parei a leitura por um tempo, para fazer um reset mensal e isso acabou ajudando, creio.
Sul: Memórias da Viagem do Endurance é um relato realmente impressionante de um verdadeiro herói do final da era das grandes expedições, ainda que a travessia transantártica só fosse alcançada mais de 30 anos depois. Aliás, herói no singular é injustiça, pois o relato pode ser essencialmente de Shackleton, mas ele, sua contrapartida do segundo grupo e toda a tripulação são verdadeiros ícones da resiliência humana, verdadeiras inspirações para todos nós em qualquer profissão e/ou atividade. Pode ser uma leitura difícil para quem não estiver acostumado, mas chega a dar vergonha admitir esse tipo de dificuldade ridícula diante dos eventos e feitos descritos na obra.
Sul: Memórias da Viagem do Endurance (South: A Memoir of the Endurance Voyage – Reino Unido, 1919)
Autor: Ernest Shackleton
Editora: William Heinemann
Data de publicação: dezembro de 1919
Páginas: 347