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Crítica | Strike a Pose

por Leonardo Campos
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Um documentário cercado de polêmica. Uma turnê incendiária. Críticas ao catolicismo, simulação provocadora da masturbação feminina, discussões sobre gênero e identidade, referências ao cinema e outros tantos debates. Na Cama com Madonna, documentário sobre a Blond Ambition Tour, ainda hoje, rende comentário. Um deles se tornou extensão do que podemos conferir em Madonna: uma biografia íntima, de J. R. Taraborelli, um dos melhores relatos biográficos da artista. Ele relata que em 21 de janeiro de 1992, os bailarinos Oliver Crumes, Kevin Stea e Gabriel Trupin abriram um processo contra Madonna, numa alegação sobre invasão de privacidade, dentre outras questões, tais como supressão da verdade e inflição intencional de sofrimento. Esse era apenas o começo de uma avalanche de acontecimentos explosivos relacionados aos trabalhos da artista, expostos e relativizados em Strike a Pose, documentário lançado recentemente e disponibilizado pelo serviço de streaming Netflix.

Será uma desconstrução da imagem de Madonna, a acolhedora de causas politizadas e defensora dos oprimidos? Como analisado na crítica ao documentário Na Cama Com Madonna, o “magoado” Christopher Ciccone, irmão da artista, produtor artístico do espetáculo, descreveu em sua biografia, A Minha Vida com Minha Irmã Madonna, que muitas coisas na produção foram representações. A ida de Madonna ao túmulo da mãe, a sua suposta atuação como mentora e protetora dos dançarinos e outros membros da equipe, etc. Para quem conhece os novos rumos da linguagem documental, sabe que o gênero passou por transformações e até mesmo a recepção hoje compreende que os documentários não necessariamente retratam uma situação tal como ela é. O material é ponto de vista de alguém e por isso, imbuído de intencionalidades. Não existe ali uma verdadeira Madonna, mas uma das versões da artista que ao longo dos anos, evoluiu enquanto ser humano e talvez compreenda a situação sob outro ponto de vista. Sigamos.

Em 2016, no Festival do Rio, os realizadores homenagearam a artista pelos 25 anos do documentário Na Cama com Madonna, exibido para o público, assim como outras produções que gravitam em torno desta produção: Kiki, de Sara Jordeno, filme focado na comunidade LGBT negra de Nova Iorque, um registro que contempla os bailes da região e a competição de voguing, a dança moderna com movimentos corporais sofisticados que Madonna se apropriou para um dos seus maiores sucessos, além de Strike a Pose, dos cineastas holandeses Ester Gould e Reijer Zwann. Conforme aponta a produção, há um divisor de águas em ter trabalhado com Madonna. Para alguns foi uma maldição, para outros uma benção. Como sabemos, em 1990, sete rapazes (um heterossexual e seis homossexuais) foram selecionados pela equipe da artista pop para a turnê que moldou o formato dos espetáculos musicais contemporâneos.

A controversa produção culminou no documentário Na Cama com Madonna, o tal manual instrutivo sobre ser uma autêntica, politizada, mimada, antipática e birrenta diva do pop. Durante a turnê, a cantora tratou de temas polêmicos e delicados ainda hoje, mas que na época eram muito mais inflamáveis, tais como a homossexualidade, a desmitificação da AIDS, a liberdade de expressão e o empoderamento feminino. Com toda extravagância e exagero, a artista garantiu sucesso crítico e de bilheteria com seu material, alçando os seus dançarinos ao posto de ícones na época. O que deveria ser uma benção, entretanto, se tornou uma maldição, pois os que acreditavam numa relação de amizade com a artista ficaram decepcionados, bem como aqueles que tiveram os seus egos inflados durante o período de superexposição não conseguiram segurar a onda depois que a fase passou, entregando-se ao álcool e drogas ilícitas.

Antes de chegar ao Brasil, a produção estreou no Festival de Berlim, na Mostra Midnight Docs, além de já ter passeado pelo mundo em outros eventos. Com um roteiro que trata poeticamente sobre mudanças, com personagens sociais que tiveram que lidar com os impactos da fama excessiva, mas temporária, Strike a Pose divide-se em duas partes, sendo a primeira uma recapitulação das memórias dos dançarinos, detalhes resgatados através de depoimentos e materiais de TV, trechos do videoclipe Vogue, cenas da turnê e de noticiários. No segundo momento, somos atualizados sobre o destino de cada dançarino. Slam, Kevin Stea, Carlton Wilborn, Jose Gutierez, Luis Camacho e Oliver Crumes prestam os seus depoimentos emocionados. Gabriel Trupin é o único que teve de ser representado por sua mãe, pois faleceu em decorrência das complicações envolvendo a AIDS em 1994.

Trupin foi um dos envolvidos no processo contra Madonna após a turnê, ao alegar que foi forçado a sair do armário para a família após a repercussão da famosa cena do beijo gay durante a brincadeira de “verdade ou desafio” proposta num dos maiores momentos encenados de Na Cama com Madonna.  Os demais processos foram por participação nos lucros e exposição indevida. Com tom melancólico, José Gutierez e Luis Camacho contam como introduziram o voguing para a artista em 1989, o que culminou no deslumbrante Vogue, dirigido por David Fincher. Entre os relatos também está o trabalho que desenvolvem para sobreviver nesta era pós-Madonna, bem como os impactos das festas e drogas da época e suas reverberações na saúde de cada um deles atualmente. Há relatos que apontam uma mulher obstinada e que produziu um grande trabalho para homossexuais e mulheres. Outros lamentam apenas não ter dado continuidade ao passo que Madonna evoluía como artista.

Praticamente todos os depoimentos são comoventes. Os dançarinos Slam e Carlton Wilborn revelam que convivem com o vírus HIV desde antes da turnê. Eles contam como tiveram de esconder tudo para que não perdessem oportunidades ou fossem estigmatizados. Carlton, por sinal, é um dos responsáveis pela cena mais metafórica do documentário. Filmado de costas, executa os passos clássicos de Vogue em um palco vazio, diante de uma arena de espetáculos completamente desocupada, representando de fato o tema do documentário: o “antes” e o “depois” da fama. Rico em contexto, Strike a Pose ganha pontos por não criar uma narrativa maniqueísta que constrói os dançarinos como vítimas e Madonna como algoz de seus respectivos destinos. Além da análise dos movimentos da época, do debate pulsante sobre apropriação cultural (do voguing) e da projeção da artista com uma carreira tão longa numa cultura conhecida por valorizar o passageiro e a banalidade, o documentário é também uma aula sobre política, movimentos culturais e as agonizantes relações sociais no bojo do capitalismo.

Strike a Pose (Estados Unidos, 2016)
Direção: Ester Gould, Reijer Zwann
Roteiro: Ester Gould, Reijer Zwann
Elenco: Gabriel Trupin, Slam, Kevin Stea, Carlton Wilborn, Jose Gutierez, Luis Camacho, Oliver Crumes, Madonna
Duração: 83 min.

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