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Crítica | Stranger Things – 3ª Temporada

por Gabriel Carvalho
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“Mantenha oito centímetros de porta aberta.”

Contém spoilers leves dos primeiros quatros capítulos. Leia, aqui, as críticas das temporadas anteriores.

Ao começar a terceira temporada de Stranger Things, uma das primeiras referências aparentes, dentre as tantas que surgem no seu decorrer, é uma revisitação ao começo de Dia dos Mortos, um clássico do cinema de horror comandado por George A. Romero, que é visto pelos personagens. O próprio saudoso cineasta chegou a descrever o seu projeto como uma “tragédia acerca do quão a escassez de comunicação humana causa caos e colapso mesmo no menor pedaço da sociedade”. Usando, desta vez, a nostalgia com menos passividade, Stranger Things repensará essa premissa no seu universo. Hawkins é uma cidade bem pequena, que, porém, comporta os eventos mais ameaçadores para o planeta – novamente, esse é o caso. Ao mesmo tempo, a incompetência na compreensão entre os personagens será um dos motivos para surgir a maioria dos confrontos da temporada. Agora um pouco mais velhos e até espinhentos, os amigos encontram-se crescendo, namorando e negligenciando os seus relacionamentos. Enquanto impasses extraordinários surgem em paralelo, tais questões menores retratam a urgência da união entre esses personagens, de uma pessoa entender a outra, da comunicação ser estabelecida. Em uma temporada sobre os perigos da incomunicabilidade, os Irmãos Duffer usam as nostalgias cinematográficas para engatar o momento mais rico conceitualmente do seriado até então, mesmo em meio a grandes equívocos.

Enquanto Dustin (Gaten Matarazzo) percebe estar escanteado, após passar um mês viajando, Will (Noah Schnapp) não consegue mais agendar as tais partidas de Dungeons & Dragons em meio às questões amorosas que Lucas (Caleb McLaughlin) e Mike (Finn Wolfhard) tanto enfrentam. Hopper (David Harbour), por sua vez, possui problemas paternos em expressar suas preocupações com o relacionamento de Eleven (Millie Bobby Brown), ao passo que o seu interesse em Joyce (Winona Ryder) não consegue ser acertado. Já Nancy (Natalia Dyer), que está empregada em um jornal de Hawkins e tenta superar as barreiras do preconceito, sofre por não ser compreendida por Jonathan (Charlie Heaton). Certamente tem muito acontecendo, mas sempre para retornar à essa premissa: a separação como o caminho para o caos e a compreensão como o caminho para a salvação. O seriado, curiosamente, vai até mais além em termos narrativos, pois origina como uma das suas problemáticas um coadjuvante, que é estrangeiro, querendo comunicar-se com os protagonistas. Mais inesperado que isso é a temporada também tanger o capitalismo, trazendo a Guerra Fria para o cenário oitentista, explorando corrupção política e usando o Dia da Independência no contexto. Com variados temas e tramas, existe confusão no processo, contudo, também espírito por um dos ambientes centrais ser logo um shopping – como em outro filme de Romero, Despertar dos Mortos.

Mas os Irmãos Duffer não estão pensando em reiterar sem quaisquer novidades os pensamentos de Romero acerca do mundo, a sociedade e o próprio Estados Unidos. Em contrapartida, ambos usam as referências e as premissas destas obras para pensar as coisas mais otimisticamente e, nisso, ganhar um relevo minimamente singular. Se O Enigma do Outro Mundo, de Carpenter, partia para uma conclusão extremamente sombria, o seriado opta por explorar premissas parecidas à sua maneira, dando um rosto seu à nostalgia e às referências: as questões adolescentes, o ar moleque de Steven Spielberg e a abordagem mais rotineira, mais íntima, continuam presentes. O clássico cinematográfico em questão é citado nominalmente e estampa inúmeros pôsteres. No entanto, a brincadeira não para por aí. Pelo contrário, as ameaças desta terceira temporada se remetem imensamente à Coisa do longa-metragem, misturadas pontualmente com antagonistas que soam como mortos-vivos. Um exagero seria, entretanto, pensar que algum dos diretores desse seriado conseguiria alcançar o potencial imagético dos nomes previamente comentados. Pois, na verdade, essa terceira temporada não está tão criativa assim, nem para pensar os seus combates – grande parte se resolve com Eleven usando seus poderes no último segundo – e nem para os resolver – com muitos clímax surgindo, ao invés de uma construção realmente intensa de tensões e horrores.

Enquanto poderiam explorar mais as personificações das ameaças, como a que acontece com Billy (Dacre Montgomery), os Irmãos Duffer estagnam a narrativa. Ao menos, os monstros são críveis, margeando algumas exímias cenas grotescas. Mas a sensação é de repetição. O que acontece com Billy, particularmente, é mais interessante, por sugerir, até mesmo naquele que era o vilão da temporada passada, uma busca por compreensão, por se comunicar. O resultado não é de todo sincero, porque certas cenas são avulsas a uma contextualização que nunca acontece, mas há coesão em sua existência, vide a proposta dos showrunners. O mais incomunicável dos núcleos, porém, é o de Hopper com Joyce, que não param de brigar, provando não serem capazes de se comunicar. Se por uma instância, a tensão sexual entre tais amigos não soa existir como Murray (Brett Gelman) expressa, notando-se as cenas em que o roteiro pesa para tecer suposições mais óbvias, por outro as brigas são muito energéticas. David Harbour nunca esteve selvagem assim, gritando o tempo inteiro – o que, consequentemente, torna-o perfeito para alguém como Joyce. O que marca nesse sentido é o quão incontroláveis e ansiosos estão todos esses personagens, o que a conclusão contrapõe com carinho. Já a mais sem-graça trama, o oposto desta, é a de Nancy, que se resolve sem sensibilidade, esquecendo por continuar a tratar do drama particular da garota.

É uma pena, assim sendo, que o núcleo aparentemente principal da temporada seja um dos seus menos interessantes. Will possui, por exemplo, a premissa de estar insatisfeito entre seus amigos. No entanto, essa sua trama, que conta inclusive com um diálogo interessantíssimo acerca dos interesses do garoto, para o azar de quem esperava mais aprofundamento nessa parte não se encaminha a algum lugar. Na verdade, o personagem nunca foi tão irrelevante quanto nessa temporada, servindo apenas como um artifício expositivo do roteiro por conta dos seus arrepios, que notificam a existência de coisas sinistras. Para uma temporada que teoricamente investiria em uma certa paranoia de Guerra Fria não seria mais interessante os personagens estarem à deriva das certezas? Mike e Lucas, no mais, não têm muito a contribuir, com o primeiro simplesmente tendo um drama com Eleven e que se resolve sem muito pensamento mais robusto. A grande questão é que, em termos conspiratórios, não existe muita conspiração. No que tange a ameaça em si, o roteiro esvazia uma oportunidade de tensão mais elaborada, porque o uso das figuras humanas é mais amedrontador que o de monstros. Quando uma sequência com “We’ll Meet Again” encerra um episódio, existe um prenúncio de horror que nunca se cumpre. E, ao mesmo tempo que isso, Stranger Things nunca se desinteressou tanto pelas mortes de personagens secundárias.

Por ser bem distinto dentre os quatro, o núcleo da sorveteria é o mais empolgante, narrativamente resolvido com decência. Encabeçado por Dustin e completado por Steve (Joe Keery), retomando sua jornada de “redenção”, e Robin (Maya Hawke), uma nova personagem, a comédia surge como uma constante a esse grupo, investigando uma enigmática mensagem soviética. Paralelamente, a trama inteira parte de um princípio que soa novo na série – os russos, ora -, sem envolver-se com os monstros primeiramente e instigando por tratar de uma conspiração renovada – o competente núcleo de Hopper e Joyce também acompanha isso. Como parte de uma combinação quase-perfeita de uma criança – Erica (Priah Fergunson) -, um adolescente e dois jovens adultos, esse é o grupo que consegue melhor se comunicar entre si – e o que eles conquistam é surpreendente demais. A temporada realmente crê que os pequenos possam ser as soluções frente ao caos. Por expressarem suas questões internas naturalmente, apesar de ainda existir impasses a serem resolvidos e que provocam confrontos pontuais, os personagens entram em discussões pertinentes e que propõem conclusões graciosas, como é uma descoberta acerca de Robin, assim como ótimas piadas. Portanto, esse núcleo é orgânico. No mais, interessante ver Erica ganhando uma promoção no elenco da série. A menina não possui muita função no drama, mas ajuda na comédia.

Se o grupo principal escanteia Dustin, nesse o garoto encontra uma simpatia maior e até mais sentimento ao explorar o mistério com a sua pretensa namorada, que o jovem busca se comunicar através de um rádio. Justamente o primeiro capítulo da temporada já começa esse emaranhado de tramas e propostas que se reúnem na crença dos Duffer de que os coletivos são grandiosos, mesmo que seja um coletivo pequeno. Eleven e Max (Sadie Sink), por exemplo, se aproximam aqui, em meio às discussões envolvendo os seus relacionamentos e um pretexto de sororidade. Por sinal, Stranger Things atribui a essas questões dos personagens não se entenderem certas abordagens acerca do feminino, nunca partindo para exposição clara – como é o núcleo de Nancy também. Em comparação a Dia dos Mortos, considerada uma obra feminista na época por trazer uma protagonista empoderada, um projeto casa-se ao outro nessa analogia, pautada na mera necessidade das pessoas perceberem que juntas poderãm mais. Dessa maneira, amarra-se um tema a outro, o que não acontece com as constantes abordagens ao capitalismo, ao comunismo e ao embate classicista entre Estados Unidos e União Soviética. Há espaço para críticas internas, relacionadas principalmente ao shopping e à prefeitura, mas nada profundo. O resumo mesmo é um capanga genérico soviético antagonizando os Looney Tunes, o Burger King e o Pica-Pau. E só.

Os Irmãos Duffer usufruem do apelo nostálgico, por conta das citações que tecem na temporada, para assegurar um pensamento menos domesticado e redundante, mas mais seguro do que creem em particular: suas crenças otimistas. Ao pensar a incomunicabilidade de Romero, mas não como o próprio, pensam-a por um potencial dramático particular a seus personagens. Os arcos existem em uma unidade que cresce o impacto. As meninas que não assumem quem são, portanto, têm vergonha de se expressar. O menino que não conversa com a sua namorada à distância, portanto, não consegue se comunicar. O bully que amargura um passado imerso em suas memórias de infância, portanto, é amargurado por ser incompreensível para os outros. Há o namorado que não entende os desafios de sua namorada. Há a namorada que não consegue se expressar em um mundo masculino. O garoto que não consegue deixar de se comunicar e termina, portanto, nada expressando. A garota que não tem espaço para se expressar como indivíduo. A mãe que acumula tragédias, mas não comunica os seus atuais anseios. O pai que tem medo de mudanças, mas não consegue expressar seus temores. Em meio a isso, a temporada usa referências originalmente mais pessimistas para as redefinir em uma abordagem esperançosa. Do quão a restauração da comunicação humana, mesmo no menor pedaço da sociedade, pode impedir o caos e os colapsos.

Stranger Things – 3ª Temporada (EUA – 4 de julho de 2019)
Showrunners: Matt Duffer, Ross Duffer (Irmãos Duffer)
Direção: Matt Duffer, Ross Duffer, Shawn Levy, Uta Briesewitz
Roteiro: Matt Duffer, Ross Duffer, William Bridges, Curtis Gwinn, Paul Dichter, Kate Trefry
Elenco: Winona Ryder, David Harbour, Finn Wolfhard, Millie Bobby Brown, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughlin, Natalia Dyer, Charlie Heaton, Noah Schnapp, Joe Keery, Sadie Sink, Dacre Montgomery, Cara Buono, Maya Hawke, Priah Fergunson, Brett Gelman, Alec Utgoff, Joe Chrest, Carry Elwes, Gabriella Pizzolo
Duração: 480 min.

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