Fazer a análise de uma adaptação literária de uma obra audiovisual não é uma das tarefas mais fáceis. Não pela complexidade do assunto, mas sim pela notória dificuldade que os autores têm em se libertar das amarras impostas pelo roteiro como efetivamente filmado. A situação fica ainda mais complicada quando o filme adaptado é cercado de uma horda de fãs, o que exige fidelidade ao mesmo tempo que segredo e, além disso, existe forte controle editorial pela produtora que normalmente não autorizará desvios muito grandes do que é visto nas telas. E, claro, quando se fala em Star Wars, a complicação é, talvez, decuplicada.
Considerando que O Despertar da Força é o filme mais aguardado dos últimos 10 anos (dos últimos 32 se, como eu, o leitor ignora a Trilogia Prelúdio), a questão ganha um vulto quase sem precedentes, colocando enorme pressão sobre o autor escolhido para escrever a adaptação literária. E Alan Dean Foster não é um novato nessa área. Ele escreveu as adaptações literárias de Alien, o Oitavo Passageiro e Aliens, o Resgate, além do reboot de Abrams de Star Trek e também da continuação Além da Escuridão: Star Trek, dentre dezenas de outras obras relacionadas com franquias cinematográficas e também próprias. Dentro do universo de Star Wars especificamente, o autor foi o primeiro a trabalhar em uma “novelização” de um filme da saga, servindo como ghost writer de George Lucas em Star Wars: Uma Nova Esperança, em 1976. Além dessa obra seminal, Foster escreveu outras duas para o universo expandido de Star Wars, hoje não mais consideradas parte do cânone: Splinter of the Mind’s Eye, o livro que efetivamente iniciou o Universo Expandido literário em 1978 e The Approaching Storm, em 2002. Em outras palavras, mais um veterano volta ao universo que ajudou a estabelecer.
No entanto, sem maiores rodeios, o trabalho de Foster, com O Despertar da Força, não é muito mais do que apenas burocrático diante de sua servitude ao material fonte. Óbvio que jamais esperaria a liberdade que ele teve quando escreveu a adaptação de Uma Nova Esperança, mas, aqui, o que vemos é, praticamente, o filme transformado em livro palavra por palavra, sem muito mais o que acrescentar, sem muito mais a oferecer aos leitores. Na verdade, mesmo levando em consideração as questões que mencionei na abertura da presente crítica, que certamente impediram maior latitude a Foster, ainda assim a adaptação desaponta. E a razão talvez esteja fora do alcance do autor também, algo que provavelmente nunca saberemos.
E eu explico. O vocabulário, a construção dos parágrafos e dos capítulos, a estrutura de toda obra parece-me ter sido feita para um público não mais do que juvenil. O livro não é muito diferente do que a mais rasteira obra mirada no público “jovem adulto” que disputam espaço fervorosamente nas prateleiras de livrarias por aí. E notem que não espero que uma obra desse naipe tenha vocabulário elisabetano ou erudição digna de James Joyce. Claro que não! No entanto, espero um mínimo de desafio, um mínimo de complexidade que não entregue de bandeja as conclusões, que não retire do leitor sua capacidade dedutiva. O que vemos hoje, cada vez mais, é uma espécie de “emburrecimento” do público leitor, que muitas vezes não sabe mais procurar obras efetivamente seminais, preferindo se socorrer de literatura de fácil digestão, de compreensão imediata. Sinais dos tempos? Talvez. Mas este velho crítico realmente tenta sempre esperar o melhor mesmo no caso de obras em tese simples, como sem dúvida é a história de O Despertar da Força.
Mas histórias simples não necessariamente resultam em obras simples. Há muito material no roteiro do filme que poderia ter sido expandido na adaptação literária e que poderia ter ganhado uma construção mais elaborada, mais pausada, menos concludente e definitiva. Muitos rolarão os olhos e perguntarão “o que raios esse crítico quer?”. E eu já respondi esta pergunta. Mais. Eu quero mais. Ler livros não é só ler uma sucessão de palavras formando frases, que formam parágrafos, depois capítulos e assim sucessivamente. Ler livros é mais do que entender o significado mais óbvio da história sendo contada. Ler livros deveria ser uma descoberta a cada página, descoberta essa que pode ser relacionada com a história em si, lógico, mas que pode ser também relacioanada com a gramática, com a filosofia e com diversas outras áreas do pensamento do que a mera vontade de se acabar de ler rápido ou de ler exatamente o que o leitor acabou de assistir no cinema. Ora, se uma “novelização” não me traz mais do que o filme em que se baseou trouxe, por que lê-la, não é mesmo?
No entanto, volto a dizer: não culpo Foster integralmente por essa situação. Tenho muita tranquilidade em dizer que ele provavelmente se viu escravo de diretrizes muito rígidas partindo da Disney, LucasFilm e todos os envolvidos. A versão do roteiro que provavelmente recebeu para escrever foi a mais próxima possível do efetivo shooting scritpt e ele deve ter sido direcionado a não comprometer personagens com a criação de histórias pregressas ou de pensamentos que fugissem à rigidez da história que foi às telonas. Só para dar um exemplo, Lor San Tekka, personagem vivido pelo veterano Max von Sydow e que dá ignição à história entregando fragmento do mapa que leva à Luke Skywalker para o piloto da resistência Poe Dameron (Oscar Isaac), ganha não mais do que dois minutos de tela no filme. Ele poderia ter sido objeto de diálogos e explicações um pouco mais detalhadas, mas o trabalho de Foster limitou-se a transpor o que é visto no cinema, com apenas a indicação de que ele teria sido, quando mais jovem, um “soldado da fortuna”, sem maiores elucubrações.
E a razão para esse aprisionamento do autor à uma linha de raciocínio com zero de liberdade é muito clara: a recriação do Universo Expandido canônico de Star Wars. Como todos sabem, a Disney tomou a decisão de zerar o Universo Expandido em 1º de janeiro de 2015, ou seja, tudo antes escrito sobre a saga – livros ou quadrinhos – foi apagado da continuidade, com exceção das adaptações literárias dos seis filmes anteriores. Com isso, o vale-tudo começou, com uma infinidade de obras novas sendo lançadas a toque de caixa para enriquecer o universo e encher os bolsos da Cada do Camundongo. Estratégia acertadíssima do ponto de vista econômico, mas que causa situações como a que descrevi acima. E isso tudo, claro, aliado ao fato de que o objetivo é criar produtos de mais fácil consumo, simplificando as narrativas o máximo possível. Alan Dean Foster definitivamente merecia uma chance mais honrosa de voltar à saga.
Em termos de história, não há muito o que acrescentar. A “novelização” conta a história de Rey, uma catadora de peças no planeta Jakku e de Finn, um Stormtrooper arrependido que acabam se juntando depois que o primeiro encontra um androide redondo chamado BB-8 e o segundo ajuda o dono do droide e piloto da Resistência à escapar da Primeira Ordem, entidade que substitui o Império da Trilogia Original. Juntos com um Han Solo trinta anos mais velho, eles partem em uma aventura para devolver o mapa contido em BB-8, que em tese leva à Luke Skywalker, para a Resistência, enquanto a Primeira Ordem, comandada pelo sinistro Kylo-Ren, tenta impedi-los. Com exceção de algumas sequências e outras leves modificações que enumerei abaixo, a adaptação literária segue exatamente o mesmo caminho, com os mesmos diálogos do filme.
Em suma, a adaptação literária de Star Wars: O Despertar da Força nada acrescenta de verdade ao cânone e em nenhum momento desafia o leitor com questões mais complexas ou mesmo com uma estrutura gramatical digna de nota. Parágrafos curtos, frases simples e pouco tempo para cada personagem, quase que emulando os cortes do filme são os motes do livro. Uma pena, pois Foster era capaz de bem mais.
SPOILERS do livro e do filme abaixo
Aos curiosos, tomei a liberdade de enumerar as modificações que julguei mais relevantes da adaptação literária em relação livro:
1. A General Leia Organa envia Korr Sella, sua assistente pessoal, para a Republic City (não fica claro se é em Coruscant) para pedir ao Senado interferência direta contra a Primeira Ordem. Apesar de relutante, a personagem parte para lá. No filme, a cena inexiste, mas vemos Korr Sella brevemente já na Republic City, quando a Primeira Ordem aciona a arma da Base Starkiller. Ela é vivida pela atriz Maisie Richardson-Sellers.
2. R2-D2 aparece duas outras vezes antes de misteriosamente reativar ao final do filme/livro. C3P0 lamenta a ausência de seu amigo, que é está em “modo de manutenção mínima” e que, por isso, não pode ajudá-lo a consertar um terrível erro que cometera: ele não ligara o sensor de long distância de BB-8, não podendo, assim, localizá-lo com facilidade, tendo que depender de uma rede de droides espalhados pela galáxia como informantes. O droide que se comunica com a Resistência sobre BB-8 no castelo de Maz Kanata em Takodana é um da rede de C-3P0. Mais tarde, em outro momento que só está no livro, é C-3P0 que pessoalmente recebe a mensagem de que BB-8 foi localizado e a transmite à Leia, levando a Resistência ao local a tempo de impedir o pior com o ataque da Primeira Ordem.
3. Na primeira conversa de Kylo Ren com o Líder Supremo Snoke, Snoke diz a ele que “eu vi o Império Galático surgir e então cair. Os ingênuos tagarelam sobre o triunfo da verdade e da justiça, do individualismo e livre-arbítrio. Como se essas coias fossem sólidas e reais, em vez de simples julgamentos subjetivos” (tradução livre). O importante é perceber que Snoke, aparentemente, esteve então presente, de alguma forma, durante a ascensão do Império. Resta saber se ele participou ativamente ou só ficou nas sombras.
4. Há um pouco de explicação sobre o que acontece com Poe Dameron depois que ele cai em Jakku. Ele fica momentaneamente sem memória, que aos poucos vai voltando e, andando sem rumo, ele acaba esbarrando em Naka, da raça Blarina, em um speeder. Ela é uma catadora de peças como Rey e ajuda Poe a voltar à civilização depois que Poe, pilotando seu speeder, a salva de um ataque de piratas do deserto, o Clã Strus.
5. A conversa entre Rey e Han Solo no cockpit da Millenium Falcon é bem mais longa e permite que Solo veja mais claramente o grau de competência da jovem com naves espaciais como um todo e com a dele em particular.
6. No castelo de Maz Kanata, logo depois de Rey tentar convencer Finn de ficar, Unkar Plutt, de quem ela roubara a Millenium Falcon, a encontra. Ela tenta atirar nele com o blaster que Han Solo havia dado a ela, mas não consegue e Plutt diz que ela primeiro precisa destravar a arma. Em seguinda, Chewbacca chega e arranca o braço de Plutt com as mãos, em cena que claramente espelha a da cantina em Mos Eisley em Uma Nova Esperança. Reparem que esse destravamento da arma ensinado por Plutt é usado depois por Rey quando ela precisa atirar em um Stormtrooper.
7. Han pede à Maz Kanata que leve o droide até Leia e Maz responde que ele deve levá-lo pessoalmente. E um pouco do passado é revelado, na seguinte frase: “Han, quando você veio me procurar pela primeira vez, sua mais importante decisão, envolvendo seus laços mais importantes, ainda estava por vir. Estou surpresa, francamente. Você sempre foi tão bom em olhar para frente. Acho que agora é hora de olhar para trás. Para o que – e quem – deixou para trás.” (tradução livre) O que será que Han foi pedir à Maz? Uma chance para ser novamente um contrabandista? Ou algo a mais? Será que tem relação com Kylo Ren? Com Rey?
8. Na visão da Força de Rey, além da respiração de Vader e do corredor de Bespin, ela vê “duas figuras em combate” (Luke e Vader?) e um “garoto no fim do corredor”. Seria Anakin quando bem jovem? Além disso, ela ouve uma voz dizendo para ela “Fique aqui. Eu voltarei para te buscar.” e “Eu voltarei querida. Eu prometo.”
9. Leia sente um fortíssimo distúrbio na Força quando o sistema Hosnian é destruído pela Primeira Ordem, uma versão mais forte do que Obi-Wan sente quando Alderaan é destruído em Uma Nova Esperança.
10. No primeiro encontro de Kylo Ren com Rey, ele tem uma conversa interessante com ela, dizendo que ela atirou nele primeiro, que era ele quem devia ter medo dela. E ele diz “Alguma coisa. Há alguma coisa… Quem é você?” Ou seja, há um reconhecimento pela Força sobre quem ela é ou representa.
11. Maz Kanata aparece viva ao final do ataque da Primeira Ordem.
12. No primeiro encontro de Maz com Finn, no momento em que ela sobe na mesa, ela diz para ele que ela vê olhos de alguém que quer fugir. Mais tarde, depois do ataque ao seu castelo, Maz se vira para Finn novamente e diz “Eu vejo olhos de um guerreiro”.
13. No diálogo entre Leia e Han, Leia diz que Snoke “sabia que nosso filho seria forte com a Força. Que ele nasceu com potencial igual para o bem e para o mal.” Han se surpreende com essa revelação, que Leia nunca contara para ele. Ela explica que não contou por diversas razões, que esperava estar errada, que não era verdade, que ela poderia guiá-lo para o lado da luz sem ter que envolver o marido. Ela ainda diz à Han que ele tem várias qualidades, mas que paciência não é uma delas e que ela temia que as reações dele terminassem por afastar o filho. E ela termina reconhecendo que estava errada, mas que se o envolvimento de Han teria feito alguma diferença, eles nunca saberão. Han conclui então que Snoke estava observando Ben das sombras e Leia confirma que isso, mesmo antes de ela perceber o que estava acontecendo e que Snoke já estava manipulando Ben.
14. A reação de Rey ao resto real de Kylo Ren é que não é um rosto particularmente marcante e que, não fosse a intensidade do olhar, ele poderia ser qualquer pessoa no Posto Avançado de Niima (onde ela fazia negócios com Unkar Plutt). Na mesma cena, Ren promete que será gentil com ela usando a Força, mas que obterá as informações que precisa.
15. Há um pouco mais de explicação sobre a natureza da arma da Primeira Ordem que pode ser resumida como uma arma que atira diretamente através de um buraco no continuum espaço-temporal em tempo real. Por isso o raio atinge distâncias incríveis instantaneamente. Além disso, a arma é localizada nas duas extremidades do planeta, não só uma e que a base na energia é a matéria escura que há em abundância no universo, mas que antes não podia ser manipulada ou armazenada.
16. A base Starkiller é completamente desconhecida da Resistência ou da República e, por essa razão, a Primeira Ordem não a defende tão bem, o que permite a aproximação da Millenium Falcon e das X-Wings da Resistência.
17. Na segunda conversa com Ren, Snoke diz que é a compaixão que Ren sente por Rey que o impede de ver sua mente. Snoke também pede que Ren traga Rey para ele.
18. Quando Han se despede de Leia, ele diz que precisa contar algo para ela há muito tempo, mas ela diz para ele contar quando voltar. Qual será o segredo?
19. Kylo Ren e alguns Stormtroopers entram na Millenium Falcon pousada na Base Starkiller. Ren vai até o cockpit e fica ali um bom tempo, dando a entender alguma conexão com o pai.
20. Rey e Finn se separam de Han e Chewie, capturando um snowspeeder e vivendo uma breve aventura em separado até os dois voltarem para o oscilador e encontrar Han no momento em que é morto por Ren.
21. O plano de Han, ao contrário do filme, não é espalhar os detonadores nas pilastras do oscilador, mas sim na pilastra principal.
22. Quando Han e Chewie vão se separar, há uma frase que já prevê o que vai acontecer: “Sem querer, seus olhares se encontram – e o olhar permanece. Homem e Wookie percebem que pode ser pela última vez. Nada mais é dito. Nada mais precisa ser dito.”
23. O momento em que Ren mata Han é muito mais rápido e bem menos ambíguo do que no filme. No livro, não há dúvidas da intenção de Ren, que efetivamente aciona o sabre de luz.
24. Depois que Poe Dameron e seus pilotos terminam de destruir o oscilador, Leia manda eles voltarem e ele se recusa, perguntando a seus colegas se eles ficariam com ele para procurar Han, Chewie, Ren e Finn. Todos ficam. Mas não há uma continuidade e a presença deles é completamente desnecessária no desenrolar da história.
25. Quando Rey usa a Força para atrair o sabre de luz de Luke, Rey olha para ela é diz “é você” e ela sente que ele sabe mais sobre ela do que ela mesmo sabe.
26. Uma voz na cabeça de Rey diz para ela matar Kylo Ren, mas ela se afasta do Lado Negro, como é mencionado expressamente no parágrafo.
27. O General Hux chega para recolher Kylo Ren no momento em que a terra separa os dois. Ele localiza Ren pois há um sensor no cinto dele.
28. A Dra. Kalonia (a mesma que trata Chewie) diz expressamente que Finn ficará bem.
29. O Almirante Statura diz que faz sentido a Primeira Ordem ter achado o resto do mapa nos arquivos do Império, pois o Império deve ter ido atrás dos primeiros templos Jedi para destrui-los e coletar informações “periféricas”.
30. R2-D2 desperta e só depois começa a pesquisar seus arquivos para localizar o mapa. Em outras palavras, seu despertar consegue ser mais aleatório ainda no livro do que no filme.
31. Poe e Rey formalmente se apresentam.
32. Leia tem um diálogo com Rey em que Leia diz à jovem que ela estava orgulhosa do que ela estava para fazer (procurar Luke). Rey responde “Mas você também está com medo. Ao me mandar embor, você – se lembra. Leia então interrompe afirmando que “Você não terá o mesmo destino de nosso filho”. O diálogo dá a entender, então que Rey não é filha de Leia ou ela não teria dito “nosso filho”. Ou, claro, Leia não sabe que teve uma filha (como isso é possível, não sei…).
Star Wars: O Despertar da Força (Star Wars: The Force Awakens, EUA – 2015)
Autor: Alan Dean Foster (baseado em roteiro de J.J. Abrams, Lawrence Kasdan e Michael Arndt e personagens criados por George Lucas)
Lançamento no Brasil: não lançado quando da publicação da presente crítica
Lançamento nos EUA: 18 de dezembro de 2015 (versão digital), 05 de janeiro de 2016 (versão em papel)
Editora nos EUA: LucasBooks
Páginas: 272