- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Depois de termos episódios focados em Spock e Una neste início da segunda temporada, Tomorrow and Tomorrow and Tomorrow é efetivamente um episódio da La’an, continuando a trajetória do seriado de desenvolver os personagens ao redor de Pike. Isso se torna claro logo nos instantes iniciais da história, com o roteiro demonstrando a rotina da chefe de segurança. Gosto quando a série aborda o dia-a-dia da Enterprise, algo que vimos em momentos pontuais no ano de estreia, mesmo que aqui seja levado para caminhos mais cômicos. A cena de La’an com M’Benga, porém, traz o fio dramático que veríamos no resto do episódio: La’an lidando de maneira solitária com seus traumas hereditários e sentimentos conflitantes com a revelação de Una.
Após o bloco inicial, a história recebe uma reviravolta, com La’an encontrando um estranho que se materializa na Enterprise, colocando um dispositivo futurista nas mãos da personagem e informando-a de um ataque ao passado. La’an segue rapidamente para o centro de comando da nave, apenas para encontrar uma tripulação que não a reconhece junto do capitão James T. Kirk (Paul Wesley). A partir daí, uma breve “luta” meio pateta entre La’an e Kirk resulta em ambos sendo jogados de volta ao século 21, onde acabam se conhecendo ao explorar uma Toronto contemporânea e tentam desvendar a situação inusitada a qual se encontram, ecoando o famoso clássico A Cidade à Beira da Eternidade, penúltimo episódio da primeira temporada da Série Original.
Mesmo com a concepção do episódio mudando drasticamente com a viagem no tempo, a essência da história é mantida com o estudo dramático de La’an. O roteiro é sagaz ao utilizar a viagem no tempo basicamente como uma desculpa para colocar a personagem em um ambiente onde ninguém conhece seu infame sobrenome, lhe dando mais liberdade e independência para se descobrir fora das amarras genéticas e preconceituosas que tem desde que nasceu. A participação de Kirk é uma escolha interessante nesse sentido, pois, mesmo sendo um personagem famoso da franquia, La’an apenas o conhece de longe, se sentindo confortável para liberar algumas emoções com o personagem. Se a dinâmica fosse com alguma face amiga, provavelmente não teria a mesma liberdade.
Portanto, a ficção científica em Tomorrow and Tomorrow and Tomorrow nada mais é do que um pretexto para criar esse espaço seguro para a personagem. Nesse sentido, podemos ver como o paradoxo temporal, mudanças na linha do tempo e realidades alternativas não ganham importância na narrativa, que acaba explorando isso apenas com referências e conceitos datados desse tipo de história. Alguns fãs tradicionais podem se irritar, mas confesso que aprecio esse certo “descaso” com o lado sci-fi e lore, liberando a história de explicações e contextualizações para ser trabalhada como uma metáfora para a situação emocional e psicológica que a protagonista se encontra.
Por um lado, isso acaba atrapalhando a aventura e a construção da missão em si, que tem pouco mistério e um desenvolvimento ruim para estabelecer o antagonista e os eventos da ação. A explosão na ponte, o dispositivo utilizado, a teoria da conspiração e a aquela saída narrativa com o relógio não são ideias exatamente criativas, tampouco bem exploradas, o que deixa o episódio, digamos, menos entusiasmante ou empolgante de assistir. A falta de engenho e perspicácia para resoluções e criações de eventos continua sendo um grande problema dessa temporada.
Por outro lado, se o lado narrativo da investigação não é bem executado, essas rápidas saídas deixam espaço para focar na comédia romântica/slice of life de La’an e Kirk. A produção entende a abordagem de romance, desde as locações no Canadá, a direção tocante de Amanda Row e a narrativa carregada de desventuras românticas. Temos segmentos de Kirk jogando xadrez; dos personagens andando e se alfinetando pelas ruas de Toronto; uma perseguição cômica de carro; e afins. Apesar do episódio não ter tempo suficiente para estabelecer um romance mais crível e menos clichê, tudo é bem charmoso de assistir. Paul Wesley interpreta um Kirk menos “galinha” do que o original, com boa dose de carisma, enquanto Christina Chong rouba a cena com os problemas de vulnerabilidade da sua personagem.
O último ato no século 21 é um destaque do episódio. Ao trazerem o desfecho com os ancestrais de La’an e um jovem Khan Noonien Singh, o episódio apresenta um dilema moral à la “você mataria um bebê Hitler se pudesse voltar no tempo?“, com o twist de que a Segunda Guerra Mundial é um evento necessário para um futuro mais pacífico – conceito bem sombrio quando colocamos em termos de eventos reais, não é mesmo?. Diferente da mensagem direta do episódio passado, Tomorrow and Tomorrow and Tomorrow apresenta uma escolha difícil e ambígua para nossa protagonista, e uma reflexão para a audiência. É uma pena que essa ideia não é explorada com mais cuidado para além de um algoritmo romulano que lê mudanças temporais.
No fim, por mais problemático que seja o estabelecimento sci-fi do episódio, o roteiro traz um desfecho com uma característica que gosto de ver em histórias de viagem no tempo: consequências. Não falo aqui daquele shot do dispositivo esquecido na sala de Khan (um retcon? não me importei muito com aquilo) ou da possível destruição de toda uma realidade alternativa que o episódio convenientemente deixa de lado, mas sim da tragédia romântica que é o final de La’an e a versão alternativa de Kirk. Confesso que preferiria se o personagem tivesse deixado de existir ao invés da cena meio atrapalhada de sua morte, mas a cena da ligação de La’an é um desfecho corajoso, melancólico e que não traz muitas respostas ou conforto para uma personagem que já começou o episódio em conflito. Vai ser interessante acompanhar a trajetória dessa já cativante adição à franquia de ST, apesar de estar preocupado com a toada apenas emocional que Strange New Worlds tem apresentado até o momento.
OBS: Só queria citar que The Orville, na minha opinião a melhor versão do legado de Star Trek para a época atual, fez um episódio nessa mesma linha chamado Twice in a Lifetime que é simplesmente sensacional, sendo que trekkers precisam dar mais chances a este seriado que é muito mais do que uma sátira de ST, principalmente a partir da segunda temporada.
Star Trek: Strange New Worlds – 2X03: Tomorrow and Tomorrow and Tomorrow (EUA, 29 de junho de 2023)
Desenvolvimento: Akiva Goldsman, Jenny Lumet, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Amanda Row
Roteiro: David Reed
Elenco: Anson Mount, Ethan Peck, Jess Bush, Christina Chong, Celia Rose Gooding, Melissa Navia, Babs Olusanmokun, Rebecca Romijn, Adrian Holmes, Carol Kane, Paul Wesley
Duração: 61 min.