- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Como indicado no final do episódio anterior, Picard está enfrentando um novo julgamento de Q. Dessa vez, porém, não é necessariamente um “teste” da entidade, mas uma penitência. Ao longo do episódio descobrimos que o antagonista fez uma mudança temporal, alterando o curso da história. Um mundo sem Federação, sem harmonia e sem igualdade. É o cenário de antítese dos temas da franquia, apresentando uma humanidade distópica com um regime totalitário e discurso xenofóbico, pontuado pelos cenários e figurinos de estilo militarista e voltados para as cores cinzas ou pretas. Os personagens principais da série se veem em um espelho sombrio, se lembrando dos acontecimentos anteriores, mas em uma linha temporal em que são monstros. O grupo, então, precisa voltar no tempo para salvar o universo desta terrível realidade.
Confesso que não sou grande fã de histórias que envolvem viagens no tempo. Na minha experiência, narrativas assim raramente têm desfechos satisfatórios com seus desdobramentos confusos e na maioria das vezes seguem tramas batidas. Mas, bem, como eu disse na crítica do episódio anterior, Picard é uma série em que o futuro é guiado pelo passado, então é mais do que apropriado que nossos personagens precisem voltar no tempo para consertar o amanhã. Além de que o tom da história e a dinâmica do grupo me agradaram enormemente, mas vou falar disso mais à frente. Vamos por partes.
Gosto bastante do embate inicial entre John de Lancie e Patrick Stewart. Vemos muita química clássica, o contexto dramático de dois adversários familiares, e a pegada reflexiva da série em torno de mortalidade e velhice, principalmente no estranho comportamento de Q. Nesse sentido, a direção continua com sua dieta de enquadramentos fechados e concentração em faces, também dispondo de um curioso aspecto teatral no momento muito bem-atuado pelo par, próximo da linha shakespeariana que o texto imprime, inclusive com referência à Macbeth.
Outro elemento importantíssimo da cena reside na quantidade de dúvidas levantadas. Por que Q está diferente? Qual é seu objetivo dessa vez? Qual é o envolvimento da mãe de Picard na trama? Como tudo isso se liga ao núcleo dos Borgs? E também qual é a mudança temporal que o antagonista criou? Existem muitos questionamentos. E isso é bom. Cria mistérios orgânicos, atiça nossa curiosidade e envolve a audiência no desenrolar da trama. É visível como os roteiristas aprenderam com os erros didáticos e expositivos da temporada inaugural. Tanto no mais calmo The Star Gazer (com exceção da cena de Guinan) quanto nesse episódio mais movimentado, a narrativa flui agradavelmente, sem parar a todo instante para personagens explicarem tudo aos mínimos detalhes.
E isso me leva a abordagem de tom em Penance. É um episódio totalmente voltado para a aventura e o puro entretenimento. Confesso que estranhei um pouco no início, pois a forma narrativa da série é caracterizada pelo estilo pessoal, mais meditativo e existencialista, mas o lado mais, digamos, lúdico da coisa toda, é muito bem-vindo. Desde as divertidas interações e pequenos fingimentos dos personagens em “novos corpos” (a cena do Picard acenando é divertida demais!), a inserção da Rainha Borg como uma “parceira”, os jogos de palavras com a mitologia da série, o carisma e humor na dinâmica do grupo (especialmente Jurati), até a sensação aventureira mesmo, de tripulantes em uma jornada completamente maluca, temos uma experiência extremamente simpática.
Em suma, Penance é um episódio gostosinho e bem divertido, uma aventura cheia de pequenos mistérios. Interessante pontuar como os temas do show coexistem na abordagem, como no próprio começo do episódio entre Q e Picard, como também em questões auto reflexivas num mundo espelhado, principalmente com Sete de Nove voltando a ser humana e o próprio arco de autoanálise do protagonista. Só tenho duas reclamações: a narrativa continua ignorando a transformação de Picard na temporada anterior; e gostaria que o cenário totalitário fosse mais explorado antes deles voltarem no tempo. No mais, eu estava esperando um capítulo abastado de comentário político e social considerando o ambiente autoritário e fascista (ainda existente ali no subtexto e no design de produção), assim como dramas isolados com a dispersão do elenco, mas os roteiristas nos trouxeram um episódio com leves toques de suspense e muito charme.
Star Trek: Picard – 2X02: Penance (EUA, 10 de março de 2022)
Desenvolvimento: Kirsten Beyer, Akiva Goldsman, Michael Chabon, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Douglas Aarniokoski
Roteiro: Terry Matalas
Elenco: Patrick Stewart, Alison Pill, Evan Evagora, Michelle Hurd, Santiago Cabrera, Isa Briones, Jeri Ryan, Orla Brady, Whoopi Goldberg, John de Lancie
Duração: 57 min.