- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Eu sei que alguns de vocês estranharam o autor da crítica, afinal, meu querido mentor e colega Ritter Fan é normalmente o responsável pelos textos do universo Star Trek. Mas eu estou tomando a franquia de assalto no site, começando por Star Trek: Prodigy, a série solo de Jean-Luc Picard e, também, a vindoura Star Trek: New Worlds (além de pretender trazer críticas das séries antigas que ainda não temos no site, caso se interessem). Dito isso, confesso que estava um pouco nervoso em assumir Picard, considerando como é uma série diluída em referências e fan services que tenho pouco conhecimento sobre – de antemão, já peço perdão para quem lê as críticas esperando contextualizações de outras obras da franquia.
Mas isso não deveria nos impedir de assistir algo, ou, melhor dizendo, uma obra audiovisual que está com sua experiência narrativa tão enraizada em fan service é um impedimento problemático para o enredo em si, amarrado em suas auto referências e sem criar uma nova história que flui com suas próprias pernas e captura novos espectadores. É por isso que não apenas concordo com as críticas do Ritter ao fan service deslocado e gratuito do primeiro ano de Picard, como ofereço a perspectiva de alguém que não conhece a maioria das piscadinhas nerds: assistindo a temporada de estreia, senti que a série é uma grande piada interna da qual não faço parte.
O elemento negativamente irônico disso tudo está na facilidade em notar esses momentos, pois são tão descolados da narrativa, tão terrivelmente repentinos e inorgânicos que os encontros de velhos amigos e rostos conhecidos são perceptíveis até mesmo para quem não conhece o background das situações saudosistas. Isso na verdade acontece já neste episódio, no encontro de Picard com Guinan (Whoopi Goldberg), brindando o fã com doses cavalares de ternura nostálgica, mas basicamente não servindo em nenhum aspecto remotamente próximo de desenvolvimento narrativo.
No entanto, também consigo entender o olhar nostálgico dos roteiristas, afinal, Picard é uma série sobre legado, com seu futuro sendo guiado pelo passado. É por isso que quando o show consegue usar as referências a seu favor de maneira orgânica, temos um ótimo estudo de personagem do protagonista-titular em diferentes frontes, seja de velhice, sua representação para àqueles a sua volta e para o próprio cânone, e principalmente seus relacionamentos. A temporada de estreia faz isso maravilhosamente bem com amizade entre Picard e Data, rendendo a substância dramática e o estopim narrativo em torno da trama humana dos androides sencientes e o retorno da pseudo-espécie Borg.
The Star Gazer nos introduz a uma abordagem similar na segunda temporada, mostrando Picard analisando a si mesmo em sua felicidade bucólica no vinhedo familiar, agora na posição de Almirante e nomeado chanceler da Academia da Frota Estelar, descansando antes da próxima aventura. O arco, até o momento, tem ares meio shakespearianos com o homem que ainda não conhece sua nova forma e nova vida (espero que o texto explore mais a transformação do personagem que ocorreu no final da temporada anterior), e também meio terapêuticos com o existencialismo romântico. Tudo isso é também pontuado pelo relacionamento maternal de Picard na montagem cheia de flashbacks para sua infância.
Como eu disse, a série tem uma narrativa que olha para trás e para frente ao mesmo tempo, evidenciando as qualidades nostálgicas do protagonista enquanto tenta desconstruí-lo à medida que ele toma novos passos, refletindo o caminho que percorreu até aqui. Nem tudo necessariamente funciona, como a cena romântica entre Picard e Laris (Orla Brady), mais constrangedora do que reveladora, e, claro, as menções e referências gratuitas que são preenchimentos vazios. Mas a questão familiar com sua mãe, o uso metafórico da Star Gazer capitaneada por Ríos como ode à primeira nave sob o comando de Picard, o retorno orgânico dos Borgs, a interação com o carismático elenco coadjuvante e a aparição final de um velho antagonista (mais disso à frente), são artifícios narrativos inteligentes para trabalhar os temas pessoais da série.
Aliás, é no campo íntimo que Picard revela suas verdadeiras qualidades dramatúrgicas. A pegada pessoal começa no caráter minimalista da direção, fazendo uma dieta de close-ups e planos próximos dos personagens, visualmente evidenciando as rugas de Patrick Stewart que carregam os temas da obra. A abordagem é mantida no ritmo mais cadenciado e menos frenético-aventureiro, assim como nos diálogos introspectivos, ainda que nesse último aspecto os roteiristas continuem falhando para criar conversações verdadeiramente significativas e emocionais. Nesse sentido, o principal tópico na temporada parece ser o de solidão, com Picard explorando se seu amor pelas estrelas é também uma forma de fuga. Se o arco do protagonista circular a autorreflexão do senso de dever e trouxer um olhar interno que desconstrua, ressignifique ou simplesmente apresente uma nova jornada para o homem Picard, teremos uma temporada interessante.
No lado macro da narrativa, gosto de como o roteiro parcialmente abandona os didatismos e os diálogos expositivos da temporada passada (até aqui pelo menos), diluindo a trama em bem-vindos mistérios. A aparição final de Q (John de Lancie) situa a aventura em torno de viagem no tempo e/ou linhas de realidade alternativa, algo que, na minha opinião, vincula-se perfeitamente com o jogo de passado e futuro temático, além de prover espaço para a série discutir os característicos temas sociais da franquia – acabei vendo o preview por impulso, e temos sinais de discussão sobre totalitarismo e preconceito, e isso sem contar com a conexão já estabelecida com Discovery (por lá, não aqui, pelo menos não ainda). E a própria entidade Q funciona conceitualmente na obra, já que o personagem é um grande questionador, perfeito para interagir com o existencialismo de Picard.
The Star Gazer é um começo promissor para a segunda temporada de Picard. Ainda temos problemas crônicos, como o fan service bobo, principal calcanhar de Aquiles da série, além do texto pouco convincente em seus diálogos óbvios e clichês, mas há o início de uma aventura aparentemente mais engajadora do que o desfile de explicações do ano inaugural, e a manutenção da abordagem pessoal e analítica do protagonista que faz a série andar. Veremos como Picard e companhia enfrentam o psicodélico e divertido Q, e se o protagonista encontrará as respostas que procura em uma nova jornada nas estrelas.
Star Trek: Picard – 2X01: The Star Gazer (EUA, 03 de março de 202)
Desenvolvimento: Kirsten Beyer, Akiva Goldsman, Michael Chabon, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Douglas Aarniokoski
Roteiro: Terry Matalas
Elenco: Patrick Stewart, Alison Pill, Evan Evagora, Michelle Hurd, Santiago Cabrera, Isa Briones, Jeri Ryan, Orla Brady, Whoopi Goldberg, John de Lancie
Duração: 57 min.