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Pelo menos um leitor matou a grande surpresa reservada para o final da 1ª temporada de Star Trek: Picard, prevendo o uso do golem inacabado visto brevemente no laboratório de Altan Inigo Soong, filho do criador de Data, como o novo corpo de Jean-Luc Picard. Em outras palavras, um twist perfeitamente circular não só para a temática da temporada em si, como para toda a trajetória do protagonista desde que seu coração foi substituído por uma versão mecânica em A Nova Geração e suas assimilações pelos Borg aconteceram como elementos formativos de sua personalidade tanto na clássica série quanto no melhor filme da franquia, Primeiro Contato.
Portanto, por mais que alguns possam virar o nariz para a solução encontrada, tenho para mim que ela foi o encaixe necessário para a temporada inaugural das aventuras de Picard já bem avançado em idade acabar com um saldo positivo, mas ainda ficando aquém de seu verdadeiro potencial. Afinal, se eu aplaudo a escolha dos showrunners em transformar o protagonista em um androide, a jornada até lá foi repleta de altos e baixos, desvios narrativos, fan services deslocados, enfim, uma sucessão de problemas que, por melhor que tenha sido o episódio duplo de encerramento, não foi suficiente para que eles tenham sido curados.
O próprio tratamento que os roteiros deram para a doença terminal de Picard é algo que me incomodou profundamente. Não só o assunto foi introduzido em um breve e críptico diálogo entre o ex-almirante e seu médico, como ele não ganhou qualquer tipo de contexto e, pior ainda, desenvolvimento ao longo da temporada. Ao contrário, ele foi soterrado debaixo de uma extensa minutagem dedicada à bobagens para agradar fãs, como Riker fazendo pizza de coelho-unicórnio (WTF!) ou Sete de Nove surgindo não uma, mas duas vezes como borg ex machina. Com isso, fomos relembrados desse “detalhe” somente na primeira parte de Et in Arcadia Ego que culmina aqui com a providencial morte de Picard justamente no minuto seguinte que ele consegue resolver todo o problema entre sintéticos, Federação e Romulanos. Coincidência é um eufemismo brabo, diria.
Aliás, um de meu receios sobre a resolução do conflito era justamente que tudo acontecesse rapidamente demais e foi exatamente o que aconteceu. Rápido, mas não ilógico, que fique bem claro. Ok, há ilogicidades, mas estas ficam confinadas a coisas como “como é que Narissa estava lá no Cubo sem ser detectada pelos xBs” que podem ser respondidas com algo na linha de “para Sete poder chutar a bunda da moça, arremessando-a em um abismo”, o que pode ser incômodo, mas que sem dúvida é catártico, mesmo que tenhamos que ouvir choramingos arrependidos de Sete para Ríos.
A velocidade dos eventos demonstra muito claramente, mais uma vez, que a temporada foi desequilibrada em termos de ação, com praticamente tudo o que é mais relevante acontecendo de maneira apertada e econômica em meros 40 minutos do episódio final, aí incluindo a já citada luta de Sete contra Narissa, a união providencial de Narek com Ríos, Raffi e o inútil do Elnor, a revelação de que Jurati estava do lado dos humanos depois de sua “traição”, a traição de Soong, a chegada da frota romulana (estranho que o Zhat Vash seja uma organização super-secreta, mas que tem uma frota desse tamanho…), a chegada da frota da Federação (o comando temporário de Riker, aí sim, é um exemplo de ótimo fan service) e, claro, o plano suicida de Picard. Sobre o plano, aliás, ele é a cara de Picard e, nesse quesito, a temporada foi perfeitamente justa com o legado do personagem. Não há nada que signifique mais a essência do adorado ex-capitão do que um sacrifício altruísta dessa natureza, mesmo que ele tenha que ser atrapalhado por diálogos mal escritos e extremamente expositivos do tipo “o exemplo vem de cima” e tal.
Tudo teria sido praticamente perfeito, portanto, se os roteiros tivessem trabalhado todos esses elementos de ação ao longo de mais alguns episódios, sem esquecer de tornar a doença de Picard algo mais presente e constante em sua vida e não uma nota de rodapé que, de repente, do nada, torna-se relevante, e sem transformar Narek, aqui, em não muito mais do que um mero extra glorificado, considerando toda a importância que ele teve antes. Da mesma forma, o belo epílogo em que Picard se reencontra com seu amigo Data na Matrix… digo, na simulação virtual onde a consciência do comandante androide vive, poderia ter ganhado mais solenidade do que apenas um trecho dos 20 minutos finais de projeção de forma que até a transferência da consciência de Picard para o golem pudesse ser explorada um pouquinho mais, sem que, mais uma vez, precisássemos que os personagens sentassem à mesa para explicar o óbvio ululante.
No entanto, apesar de todos os pesares e assim como a primeira parte desse final, a segunda conseguiu capturar a essência do que faz Star Trek ser Star Trek, algo que esteve infelizmente muito ausente na temporada, entregando um desfecho que funciona bem para a história como um todo e muito bem para quem realmente interessa, ou seja, Jean-Luc Picard. Tomara que os showrunners aprendam um pouco com a experiência e construam uma segunda temporada que dependa menos de afagos nostálgicos e mais de uma história realmente sólida e bem distribuída ao longo dos episódios, de preferência aprofundando os personagens que formam a atual tripulação e não se perdendo com novos ou antigos integrantes que não agreguem nada para a história que será contada.
Star Trek: Picard – 1X10: Et in Arcadia Ego, Part 2 (EUA, 26 de março de 2020)
Desenvolvimento: Kirsten Beyer, Akiva Goldsman, Michael Chabon, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Akiva Goldsman
Roteiro: Michael Chabon
Elenco: Patrick Stewart, Alison Pill, Evan Evagora, Michelle Hurd, Santiago Cabrera, Harry Treadaway, Isa Briones, Peyton List, Jeri Ryan, Brent Spiner, Jonathan Frakes
Duração: 57 min.