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A primeira parte do episódio duplo de encerramento da temporada inaugural de Star Trek: Picard é, juntamente com Stardust City Rag, o mais Star Trek até agora de uma série que poderia ser muito mais do que tem conseguido ser. Os ingredientes narrativos clássicos estão todos aqui, começando pelo planeta misterioso que abriga uma utopia robótica, passando pelo divertido exagero das orquídeas espaciais e culminando com bons momentos de ação típicos de uma história baseada em um presságio apocalíptico.
Et in Arcadia Ego não só é um título que diretamente referencia um paraíso bucólico (a região da Arcádia, no centro do Peloponeso, era reputado na Grécia Antiga como literalmente o paraíso na Terra), como também é o nome de duas pinturas semelhantes do pintor francês Nicolas Poussin, do século XVII, retratando a morte em meio a uma cena pastoral. Digo que a referência é à Poussin e não ao italiano Giovanni Francesco Barbieri, que pintou antes de Poussin obra de mesmo tema, com o mesmo título, pois o fato de haver duas obras por Poussin é uma rima temática com os dois quadros pintados por Data que é parte do mistério que Picard começa a desvendar já no primeiro episódio. É, sob todos os aspectos, uma bela forma de se criar um movimento circular para a narrativa.
Aliás, esse movimento circular acontece também pela introdução de Altan Inigo Soong, filho de Noonian Soong, criador de Data (e, claro, de Lore), e que é vivido também por Brent Spiner, desta vez sem a maquiagem e as lentes de sua contrapartida sintética. Trazer o próprio Data de volta seria uma trapaça feia e a escolha feita, aqui, é elegante e respeita o legado da Nova Geração, ao mesmo tempo, que funciona para trazer o querido ator de volta de maneira relevante.
Se a chegada a Coppelius é extremamente tumultuada, com um breve combate espacial interrompido pela chegada de Sete e do Cubo Borg, além das surreais aparições das tais “flores espaciais”, quando a tripulação de Picard está em terra, a história reduz seu ritmo e, mesmo diante da chegada de uma gigantesca frota romulana, tudo vai sendo abordado sem pressa, com Picard reencontrando Sete e Elnor e, depois, todos seguindo para o vilarejo dos sintéticos que é, claro, a Arcádia do título em latim. O equilíbrio entre ação e exposição consegue ser alcançado muito rapidamente, sempre com o objetivo de impulsionar a narrativa.
O retorno do tema da doença terminal de Picard, algo tocado antes tão brevemente que eu nem mais lembrava direito, é outra tentativa de resgatar a direção narrativa da temporada, que sofreu demais pela necessidade quase doentia de seus showrunners de marretar todas as referências e coadjuvantes famosos possíveis para agradar o fã nostálgico. Fica evidente a falta de desenvolvimento desse elemento ao ponto de o roteiro de Michael Chabon e Ayelet Waldman ter que voltar a ele mais de uma vez em parcos 45 minutos, quase que pedindo desculpas por terem enterrado o assunto por tanto tempo. Mesmo prevendo uma cura milagrosa no episódio final – a não ser que o plano seja mudar o nome da série – espero que haja uma função narrativa maior para a doença terminal do protagonista do que só atrair simpatia pelos seus atos heroicos.
Era bastante previsível que a revelação da visão cataclísmica para os sintéticos seria exatamente o catalisador da tragédia. Afinal, já cansamos de ver o Paradoxo da Predestinação sendo usado por aí e, com a revelação de que há sintéticos ainda mais evoluídos em algum lugar (ou tempo) do universo – será que esse pode ser o gancho para a conexão com Discovery? -, a inevitabilidade desse caminho fica patente.
Tenho minhas dúvidas, porém, se estamos diante de uma temporada que encerrará um arco nela mesma, ou se uma possível 2ª temporada continuará diretamente essa mesma história. Digo isso, pois parece haver muita coisa ainda a ser revelada e abordada, especialmente os tais sintéticos super-evoluídos, além de toda a política envolvendo romulanos, Frota Estelar e a proibição geral de sintéticos. Considerando o tempo que foi perdido em episódios que andaram de lado, o último episódio teria que ser tão repleto de encaixes e soluções, que temo o mais completo tumulto. Mas, claro, só saberemos na semana que vem.
Chega a ser curioso como o espírito de uma série clássica conseguiu ser capturado com muito mais perfeição aqui do que em episódios como Nepenthe, claramente criado com exatamente esse objetivo. Fica muito evidente que as famosas e tão cobiçadas e cavoucadas “referências”, hoje em dia, mais atrapalham do que beneficiam a arte de contar uma história. É torcer para que o encerramento da temporada mantenha essa linha e compense um pouco os problemas que a série teve.
Star Trek: Picard – 1X09: Et in Arcadia Ego, Part 1 (EUA, 19 de março de 2020)
Desenvolvimento: Kirsten Beyer, Akiva Goldsman, Michael Chabon, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Akiva Goldsman
Roteiro: Michael Chabon, Ayelet Waldman
Elenco: Patrick Stewart, Alison Pill, Evan Evagora, Michelle Hurd, Santiago Cabrera, Harry Treadaway, Isa Briones, Peyton List, Jeri Ryan, Brent Spiner
Duração: 45 min.