- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos demais episódios e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
A cada temporada de Star Trek: Lower Decks eu inevitavelmente me pego pensando – e por vezes escrevendo em minhas críticas – sobre como Mike McMahan faz de tudo para “atrasar” a resolução do assunto central de cada ano, empurrando tudo para o penúltimo ou para os dois últimos episódios e como isso invariavelmente me deixa receoso e, quando a poeira abaixa, quase que sempre estupefato pela capacidade do showrunner de fazer tanto em minutagem tão acanhada. Como nã poderia deixar de ser, Fissure Quest, penúltimo episódio de toda a série, é o primeiro da resolução do tema das fissuras dimensionais e, de quebra, não só é um dos melhores episódios até agora (sim, contando desde o começo!), como também uma inteligentíssima e ferina cutucada na moda do multiverso, praga que vem assolando filmes e séries blockbusters por aí.
Começando de maneira mais do que prosaica, com Boimler (finalmente com barba completa!), Mariner, Tendi, Rutherford e T’Lyn conversando sobre amenidades até que eles citam o nome de William Boimler, o “clone de transporte” de Boimler que surgiu no sensacional Kayshon, His Eyes Open e que teve sua “morte” falsificada e usada como instrumento de recrutamento pela misteriosa Seção 31 em Crisis Point 2: Paradoxus. Boimler Prime, que não sabe que William Boimler está vivo, indaga o que ele estaria fazendo se não tivesse morrido, o que funciona como a deixa para que a ação do episódio seja imediatamente transportada para a nave Anaximander (trata-se do nome do filósofo grego pré-socrático que, em resumo, foi um dos primeiros proponentes da ciência) na Realidade Quântica 582.76 em que ninguém menos do que o clone é o capitão, com uma tripulação composta de versões multiversais de vários outros personagens da franquia, especificamente Elim Garak (Andrew Robinson), Dr. Julian Bashir (Alexander Siddig) e Curzon Dax (Fred Tatasciore), de Deep Space Nine; T’Pol (Jolene Blalock) de Enterprise e Harry Kim (Garrett Wang), este último em múltiplas cópias, e cuja missão é parar e deter quem está tentando destruir o multiverso por meio da criação das fissuras espaciais.
William Boimler não aguenta mais esse trabalho, chamando o multiverso daquilo que ele realmente é em nossa realidade cinematográfica, “apenas remixes preguiçosos e derivados”, ou seja, um mero artifício porcaria usado e abusado por roteiros que escondem sua ineficiência com referências, atraindo e enganado o espectador no processo. Apenas por isso, o episódio já mereceria aplausos, mas é a ironia de ele próprio ser repleto de “remixes preguiçosos e derivados” de um monte de personagens dá-lhe uma outra camada de autoconsciência, de exploração daquilo que deveria ser óbvio para nós, no lado de cá. E, colocando sal na ferida, os remixes do episódio são tudo menos preguiçosos e derivados. Ao contrário, há uma sutil esperteza por trás de cada um deles, especialmente no que se refere aos vários Harry Kims quando um novo Harry Kim é resgatado e ele tem patente superior a todos os demais, levando-o a tentar reunir suas cópias em uma revolta e transformando-o efetivamente no vilão. A Mariner cientista certinha e medrosa que é também resgatada cai na categoria que resvala no genérico, mas seu uso dentro do capítulo é cirúrgico e efetivamente costurado dentro da narrativa, elevando-a mais do que apenas uma versão reversa da Mariner a que estamos acostumados.
E o uso do multiverso como artifício narrativo continua com a introdução da nave responsável pelas fissuras que é comandada por ninguém menos do que uma versão de Lily Sloane (Alfre Woodard), de Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato, mais conhecido como o melhor longa da franquia, que, no lugar de co-inventar o motor de dobra, criou o motor multidimensional, tornando-se uma exploradora multiversal (e que imediatamente me lembrou da sensacional HQ Black Science e seus “dimensionautas”) que vem abrindo as fissuras sem saber das consequências negativas de suas ações, consequências essas que são cientificamente deduzidas por Mariner. Toda a estrutura do roteiro de Lauren McGuire é maravilhosamente complexa para permitir não só a introdução de todos esses personagens alternativos – que, admito, funciona melhor para quem conhece a mitologia de Star Trek -, como para trabalhar ritmadamente a revelação da suposta vilã, somente para isso ser revertido e Harry Kim e seus Harry Kims tornarem-se os vilões por razão completamente diferente e, ainda por cima, levando a um gigantesco e muito bem construído cliffhanger em que William Boimler, confiando absolutamente na capacidade de Boimler Prime e de seus amigos em encontrarem soluções para tudo, arremessa a onda destrutiva para seu próprio universo, com a ação, então, retornando à realidade da série com o Boimler Prime surtando com a mensagem recebida e potencialmente fazendo do derradeiro episódio da série um inesquecível encerramento. É, diria sem medo de errar, um exemplo raro de perfeição narrativa.
Eu poderia falar muito mais de Fissure Quest, pois é espetacular reparar nas interações bem trabalhadas das versões alternativas dos personagens que conhecemos e, também, na forma como a ação não perder o ritmo por um segundo sequer, mas tenho para mim que esse é um episódio que simplesmente desafia convenções, que faz milagre com seus parcos 28 minutos graças a uma direção irretocável de Brandon Williams e que entrega uma história que podemos chamar de completa – com começo, meio e… quase fim – com personagens completamente “novos”, incluindo aí esse Boimler Clone bem mais maduro. O melhor que o espectador tem a fazer é rever Fissure Quest e, depois, rever mais uma vez. Esse é um episódio que merece toda a reverência possível.
Star Trek: Lower Decks – 5X09: Fissure Quest (EUA, 12 de dezembro de 2024)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Brandon Williams
Roteiro: Lauren McGuire
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Gabrielle Ruiz, Paul Scheer, Garrett Wang, Jolene Blalock, Andrew Robinson, Alexander Siddig, Alfre Woodard
Duração: 28 min.