- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos demais episódios e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Dentre os vários episódios deliciosamente bobos de Star Trek: A Série Original, há um que talvez extrapole na bobagem. Falo de Who Mourns for Adonais?, o segundo capítulo da segunda temporada em que Kirk e companhia chegam ao planeta Pollux IV e são capturados por ninguém menos do que o deus grego Apollo, ou, pelo menos, o alienígena que, quando passeou pela Terra, foi adorado como Apollo pelo terráqueos. E, no melhor estilo de Lower Decks, eis que Mike McMahan nos oferece uma espécie de “continuação” dessa bizarrice clássica, introduzindo do nada e sem muita cerimônia a alferes Olly (Saba Homayoon), neta de Zeus (ou, como a Capitã Freeman corrige Mariner, o ser que se apresenta como o referido deus) que não consegue se adaptar ao trabalho na Cerritos, sua última chance na Frota Estelar.
Mariner vê na estabanada Olly um reflexo de si mesma e faz de tudo para dar-lhe mais uma chance, apesar da insistência de Ransom de se livrar da jovem de uma vez por todas. Nesse processo de conexão entre as personagens é que Mariner descobre que a fonte dos problemas de Olly – que nada discretamente usa uma coroa de louros dourada – são os poderes herdados de seu avô que ela nega ter para parecer normal, poderes esses, claro, de fundo elétrico e que não se dão muito bem com os aparelhos eletrônicos das naves em que trabalhou, com o mesmo acontecendo na Cerritos. Mesmo assim, Mariner não desiste e, assim como ela mesmo ganhou diversas “segundas chances” antes, ela luta para que Olly encontre seu caminho, o que dá uma roupagem edificante ao segundo episódio seguido da temporada que não tem nenhuma conexão com o arco narrativo macro sobre os portais dimensionais que vêm aparecendo com grande frequência.
Eu não adoro o fato de nunca antes termos visto Olly antes, seja em séries passadas, seja em Lower Decks, mas, por outro lado, esse tipo de introdução de novos personagens normalmente de “uso único”, como diria Tyler Durden, é um artifício muito comum em séries de eras passadas, incluindo e especialmente as do universo Star Trek, pelo que não há razão para maiores estranhamentos. Além disso, como a amizade de Mariner com Olly realmente funciona dentro do tempo apertado do episódio, com direito até mesmo a Olly participar da solução do problema maior que a Cerritos enfrenta – já chego nele -, tenho para mim que o espectador só ganha com mais essa bem sacada remexida no baú profundo de referências da franquia.
Em paralelo à história de Mariner, mas ainda margeando o foco “geométrico” do episódio, vemos o grau de obsessão de Boimler, finalmente com um pouco mais de barba, além do bigode, com sua contrapartida mais segura de si de outro universo que ele tenta emular. Não só notamos que ele passou a basicamente viver de forma vicariante a vida de seu duplo, como ele vem tentando fazer o que ele faz para além de deixar os pelos faciais crescerem. E a antipática médica felina T’Ana, que, na dimensão de Boimler 2, é amiga dele, é o alvo de Boimler Prime, que passa o episódio todo tentando aproximar-se dela, só conseguindo de verdade quando ele, ferido pelo raio elétrico em forma física gerado por Olly, passa por uma cirurgia inédita criada por T’Ana, em mais uma demonstração de como Olly foi bem inserida e trabalhada aqui. Resta saber até onde vai essa crise de identidade de Boimler, pois os roteiros estão se aproximando do ponto em que não seria completamente insano imaginar interná-lo em algum sanatório, ou, no mínimo, ele receber um tabefes de seus amigos para acordar para a realidade…
Deixei o caso principal de Of Gods and Angles propositalmente por último, porque ele é um primor do uso de bizarrices de Star Trek para fazer humor inteligente. Como basicamente a franquia é e sempre foi um vale-tudo imaginativo, não é completamente fora de esquadro que a Cerritos esteja sendo usada como um campo neutro diplomático para que duas espécies alienígenas fotônicas e não corpóreas, uma no formato de esfera e outra no formato de cubo cheguem a um acordo com o objetivo de evitar uma guerra. Para começo de conversa, além da questão diplomática em si, que é um tropo clássico da franquia, não tem nada mais Star Trek das antigas, da época em que o orçamento era parco e a tecnologia audiovisual era ainda pior, que os alienígenas sejam tão e simplesmente figuras geométricas coloridas e luminosas que flutuam de um lado para o outro mutuamente se provocando a cada segundo. É genial que a “tosquidão” da série clássica tenha sido tão perfeitamente trazida para o século XXI e só mesmo Lower Decks para conseguir se safar com algo assim nos dias de hoje.
Para além do humor gerado pelos intermináveis diálogos provocativos sobre formas, ângulos, curvas e tudo o mais que possa ser aplicado a esferas e cubos, temos momentos absolutamente hilários como é a explosão da guerra entre as figuras geomêtricas em plena Cerritos, criando um caos completo e absoluto pela nave e, também, a culminação desse momento que é quando as esferas e os cubos começam a se juntar e a se transformarem em… rufem os tambores… uma mega esfera e um mega cubo… Confesso que quase morri de rir nessa hora, algo ampliado pelo comentário na própria série que mostra decepção por essa falta de imaginação dos alienígenas. E, lógico, o momento final à la Romeu e Julieta, mas sem a tragédia, com o “amor impossível” e um bebê mais impossível ainda resolvendo todo o impasse como mágica, é, novamente, algo tão Star Trek, mas tão Star Trek, que é impossível não abrir um sorriso.
Of Gods and Angles pode ser um filler e, talvez mais problemático ainda, um filler no começo da segunda metade da última temporada da série, toda, mas, como eu costumo dizer, filler bom não tem momento certo ou errado para ser inserido. Filler bom é filler bom e ponto final, até porque Lower Decks não é para ser uma série que foca em uma linha narrativa central, mas sim em diversas histórias autocontidas que, de uma forma ou de outra, conversam entre si. E, com isso, a contagem regressiva para o fim realmente começou, mas a série, pelo jeito que a temporada está indo, tem tudo para acabar em seu ponto alto!
Star Trek: Lower Decks – 5X06: Of Gods and Angles (EUA, 21 de novembro de 2024)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Brandon Williams
Roteiro: Aaron Burdette
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Gabrielle Ruiz, Paul Scheer, Saba Homayoon
Duração: 24 min.