- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos demais episódios e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Nos três primeiros episódios de sua última temporada, Lower Decks manteve uma continuidade bastante interessante na história macro, mas A Farewell to Farms (um trocadilho com o título do romance A Farewell to Arms – Adeus às Armas – de Ernest Hemingway que, em português, foi inteligentemente traduzido como Por Quem os Targs Rosnam, outro trocadilho com obra do mesmo autor, desta vez Por Quem os Sinos Dobram) vem para “quebrar” essa tendência oferecendo um desvio narrativo que foca na cultura Klingon de um lado e finalmente revela o nome da espécie e seus detalhes do Dr. Migleemo (Paul F. Tompkins), o psicólogo passeriforme verde da Cerritos criado para a série. E, mais uma vez comprovando que Mike McMahan está especialmente inspirado nessa despedida de sua série, o desvio não poderia ter sido melhor!
Para começo de conversa, é sempre interessante mergulhar nos detalhes da cultura Klingon, ao mesmo tempo uma das mais exploradas espécies alienígenas da franquia e uma das que mais sofreram modificações ao longo das décadas, levando-a a ganhar mitologia complexa e, por vezes, até contraditória. E isso fica ainda mais interessante quando o que vemos, aqui, é o que provavelmente será o desfecho da história de Ma’ah (Jon Curry), que apareceu pela primeira vez no espetacular wej Duj, ainda na segunda temporada da série, como um alferes Klingon, ganhando ótimo desenvolvimento ao longo de suas utilizações posteriores. Tendo perdido sua capitania por ter permitido um motim, ele agora vive na fazenda de sua família, cuidando de targs, semelhantes a javalis gigantes, e fazendo vinho de sangue ao lado de seu irmão Malor (Sam Witwer), ele “esbarra” em Mariner e Boimler (que agora tem um bigodinho horroroso em seu projeto de deixar a barba crescer como sua contrapartida vista no primeiro episódio da temporada) que fazem de tudo para ele recuperar seu posto, o que, claro, leva os quatro a enfrentar os mais violentos desafios do conselho de sua espécie em Qo’noS.
A dinâmica dos dois humanos da Frota Estelar com os dois Klingons é excelente, pois Mariner simplesmente não abre mão de ajudar seu amigo que, claro, hesita fortemente em aceitar, e Boimler parece o proverbial “pinto no lixo” com todo o seu conhecimento enciclopédico sobre os rituais Klingon. E a brincadeira do roteiro justamente com o vocabulário Klingon e todas as suas leis, ritos, costumes e assim por diante, recheando os diálogos de palavras que uma pessoa “normal” não tem a menor condição de entender e fazendo referências a todo tipo de obscuridade possível, inclusive um antigo jogo em VHS (sim!!!), canonizando-o no processo, é um primor narrativo que converte a violência e truculência Klingon em elementos cômicos e satíricos impagáveis, com Ma’ah realmente revelando-se como um personagem que ecoa, de seu modo, os valores de Worf.
E, se a exploração de uma espécie tão conhecida de Star Trek é uma delícia, o mesmo vale para quando, na outra ponta do episódio, mitologia nova é criada, uma perfeitamente em linha com a essência de Lower Decks, em uma das raras vezes em que isso acontece, como sabemos, já que a série tem como um de seus fundamentos justamente referenciar a vasta mitologia preexistente, cavando fundo nesse baú. Nesse lado de A Farewell to Farms, a Cerritos recebe a visita de Sir Sir Legnog (também Witwer) e Madame Gonald (Gillian Vigman, que faz a voz de T’Ana na série), dois mais do que esnobes críticos de comida da espécie klowahkana, do planeta Klowahka – um hilário chiste com a palavra “cloaca” que, bem, é talvez o orifício mais importante dos pássaros – cujos paladares o Dr. Migleemo, também klowakano, claro, faz de tudo para agradar, mas sem conseguir, o que acaba levando-o a ser preso por seus compatriotas que acham que tudo o que ele serve é sem gosto, uma ofensa capital. Não só a crítica a críticos em geral (ei, como assim???) é exatamente no ponto, como, com isso, aprendemos de imediato que a cultura klowahkana gira em torno dos sabores e da capacidade de apreciá-los, que suas prisões recebem os prisioneiros com aperitivos sofisticados, que não existe nada pior do que ser inscrito no Livro dos Sem Sabores e do que ter seu nome excluído do Grande Mapa de Assentos. O que vemos, com isso, é Lower Decks fazendo troça das nomenclaturas absurdas que povoam o universo Star Trek para criar suas próprias nomenclaturas absurdas, em um excelente exercício de retroalimentação.
A Farewell to Farms funciona bem demais como um “descanso” da história macro, um encerramento provável para a história de Ma’ah, um passeio pela mitologia Klingon e, também, como uma lição introdutória sobre a cultura klowahkana que, não tenho dúvida em afirmar, quero um dia ver adaptada em live-action, pois seria um momento inesquecível. Com isso, Lower Decks continua catapultando sua derradeira temporada ao provável posto de melhor até agora, mas não quero já cantar vitória sobre isso, senão o tiro pode sair pela cloaca… ops!
Star Trek: Lower Decks – 5X04: A Farewell To Farms (EUA, 07 de novembro de 2024)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Megan Lloyd
Roteiro: Diana Tay
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Gabrielle Ruiz, Paul Scheer, Paul F. Tompkins, Jon Curry, Sam Witwer, Jess Harnell
Duração: 27 min.