- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos demais episódios e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Muito interessante que, no terceiro episódio da 4ª temporada de Lower Decks, Mike McMahan mantenha a temática das promoções dos protagonistas como elemento central, mas sem que a série perca sua característica de “caso da semana”, em um equilíbrio raro de se alcançar, mas que o showrunner vem conseguindo lidar com muita naturalidade. Isso, claro, mostra maturidade e um excelente controle narrativo que só tende a beneficiar a narrativa macro que ele vem desenvolvendo.
Em In the Cradle of Vexilon, a clássica divisão do episódio em duas histórias paralelas ganha a adição de uma terceira, ou, talvez melhor classificando, a subdivisão da narrativa principal em duas. Nela, a Cerritos chega em Coruzon, um idílico anel espacial semelhante ao de Elysium para lidar com a deterioração da milenar inteligência artificial Vexilon, que controla todos os aspectos da gigantesca estrutura, com a Capitã Carol Freeman arregaçando as mangas para atualizar o sistema operacional, algo que, como sabemos a partir de experiências bem mais prosaicas, nunca é algo que corre tranquilamente. Enquanto isso, Bradward Boimler, em sua primeira missão como líder também em Coruzon, precisa enfrentar sua própria insegurança em colocar seus subordinados na linha de fogo, algo que ele só vence com a centrada e lógica ajuda da vulcana T’Lyn.
O mais bacana dessa história é a forma indiferente e quase que completamente despreocupada com que Freeman lida com o fato de um habitat repleto de vida inteligente existir sem que saiba sua origem e controlado por uma I.A. que começa a demonstrar defeitos de natureza apocalíptica. Tudo é tratado como se fosse apenas “mais uma quarta-feira” na vida da capitã, o que reflete, com muita exatidão, a maneira usual com que absurdos exóticos com potencial para gravíssimas e mortais consequências são encarados na franquia Star Trek. Comentários blasés na linha de “ainda bem que Vexilon não se tornou uma I.A. que quer destruir tudo” ganham em comicidade justamente porque o espectador espera justamente isso quando um ser senciente como o do título é apresentado e, quando os problemas que já estavam ocorrendo ficam muito piores justamente porque Freeman resolve fazer o que lhe dá na telha por tratar tudo o que vê como algo de seu cotidiano, o humor ganha ainda mais camadas autoreferenciais e até autocríticas que podem ser encaixadas nas mais diversas franquias sci-fi que existem por aí.
E, de certa maneira, o mesmo vale para o périplo de Boimler que, para evitar que seus subordinados sofram, passa a fazer literalmente tudo por eles, destruindo todo o espírito do trabalho em equipe que é elemento basilar da franquia em que a série está inserida. Mas o melhor é que a discussão de “ambiente de trabalho” que é trabalhada nesse lado da narrativa é absolutamente procedente e pode ser resumida na indagação que o próprio Boimler faz sobre como ele pode ser qualificado para comandar agora se, na semana passada, ele era um lower decker exatamente na mesma forma que os integrantes de sua equipe. E isso é algo que vale para o cotidiano de muitos de nós, espectadores, na escada de crescimento profissional, já que mudanças hierárquicas realmente acontecem da noite para o dia e, mesmo que haja componentes de merecimento e de experiência em muitos casos, a fronteira entre a pessoa pré-promoção em um dia e a pessoa promovida no dia seguinte é tênue, se é que ela existe.
É essa rarefeita e invisível barreira que, aliás, a terceira história do episódio procura encarar de frente ao fazer com que Mariner, Tendi e Rutherford sejam recrutados pelo tenente Dirk, de patente superior, para manualmente escanear milhares de chips para localizar uma pequeníssima discrepância. Tendi, como uma órion, logo desconfia de que tudo não passa de um trote, algo que Mariner duvida por isso não fazer parte da personalidade de Dirk. Em outras palavras, de um lado vemos Boimler, na superfície de Coruzon, duvidando de sua capacidade de liderança e, de outro, seus três colegas duvidando do próprio conceito de promoção ao desdenharem do trabalho que foram ordenados a fazer em um primeiro momento e, em um segundo, tendo dúvidas sobre a lisura de seu superior. Novamente, é o mundo muito real batendo à porta de Lower Decks, com o roteiro de Ben Waller conseguindo manter um excelente equilíbrio entre humor e tensão o tempo todo e nas três histórias contadas.
Em seu quarto ano, Lower Decks vai onde nunca antes foi ao contar uma história de temática única em seus três primeiros episódios sem perder a característica de episódios quase que completamente autocontidos. Na medida em que a quadra protagonista se aclimata na nova posição de tenente júnior, levemente acima do era antes, essa pegada sobre promoção deve esfriar e ser substituída mais completamente pela ameaça misteriosa que vimos nos dois primeiros episódios e que não aparece aqui, mas isso é de se esperar, já que o showrunner já mostrou outras vezes que ele não tem escrúpulos em encerrar linhas narrativas quando elas precisam ser encerradas. Ainda bem!
Star Trek: Lower Decks – 4X03: In the Cradle of Vexilon (EUA, 14 de setembro de 2023)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Brandon Williams
Roteiro: Ben Waller
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Paul Scheer, Gabrielle Ruiz
Duração: 24 min.