- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos demais episódios e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
É muito bacana ver uma série de animação profundamente inserida em uma vasta franquia televisiva e cinematográfica como é Star Trek já ter material suficiente para se auto referenciar como base para um episódio inteiro. Crisis Point 2: Paradoxus retorna ao conceito do brilhante Crisis Point, o penúltimo episódio da primeira temporada de Lower Decks para uma continuação que funciona nos mais variados níveis, ainda que uma análise meramente perfunctória possa levar à conclusão de que a sequência é bem pior do que a obra original.
Repararam no que eu disse? Que a continuação é pior que o original? Esse é exatamente o que o senso coletivo dita sobre sequências, não é mesmo? E é exatamente isso que o roteiro de Ben Rodgers, que também escreveu o episódio 1X09, usa para servir de ponto de partida para sua história que já começa em meio a um “filme” criado por Boimler para o holodeck em que ele é o grande Capitão Bucephalus Dagger, da USS Wayfarer, que salva a Cerritos da destruição pelas mãos das trigêmeas Melponar (Alice Wetterlund), romulanas que conseguem roubar o Chronogami, um protótipo da Frota Estelar que permite a penetração de todas as barreiras temporais. Começa então um “filme” que é um absoluto caos típico das continuações Hollywoodianas, com todos os exageros possíveis e tramas paralelas que não dão em lugar algum.
Só por essa crítica ferina – aplicável também à franquia Star Trek, até porque há uma hilária alfinetada direta aos longas da Linha Temporal Kelvin – o episódio já valeria sua minutagem em ouro, mas ele tem muito mais a oferecer do que apenas isso. E olha que nem estou contando, aqui, com as referências muito bem boladas a outros filmes e séries do universo, pois estas existem aos borbotões, incluindo uma participação especial de ninguém menos do que Hikaru Sulu (George Takei retornando ao querido personagem), e são muito bem-vinda e muito bem inseridas. Falo mais da história em si e o que ela representa para Lower Decks especificamente.
Afinal, o primeiro Crisis Point foi importante para estudar Beckett Mariner e sua relação com a Cerritos e, principalmente, com sua mãe, a Capitã Carol Freeman, pelo que era de se esperar algo semelhante na continuação. Desta vez, porém, Mariner não sequestra o programa de Boimler e o foco principal permanece no alferes de cabelo roxo em sua versão “ousada” que ele resolveu adotar no começo da temporada, mas que recebe um forte golpe psicológico quando ele, off screen, recebe a notícia de que William Boimler, seu “gêmeo de transportador” William Boimler, morrera dormindo em razão de um vazamento de gás. Sem dizer o que aconteceu seja para o espectador, seja para seus colegas, a mudança brusca de comportamento de Boimler leva à subdivisão de Crisis Point II (o filme, que é com numeral romano) entre a caçada de Tendi (vivendo a tenente-comandante Meena Vesper) e Rutherford (vivendo o engenheiro-chefe Sylvo Toussant) aos romulanos pulando de era em era pelo tempo e a busca de Boimler pelo “sentido da vida”.
A história em tese principal – para efeitos do filme – é a de Tendi e, nela, vemos aquela aventura temporal padrão de sci-fis com roteiros ruins em que tudo acontece da maneira mais clichê possível, mas que serve para colocar a personagem como capitã interina, adiantando seu sonho de ser justamente uma capitã, como ela já deixara claro outras vezes, menos, aparentemente, para Rutherford. Na história em tese paralela, que é criada na medida em que a holodeck se adapta aos desvios narrativos de Boimler, ele procura por uma entidade divina conhecida como Ki-Ty-Ha que é uma excelente referência à V’ger, do primeiro longa de Star Trek, e que sensacionalmente responde a todas as perguntas como frases inspiracionais de livros de autoajuda. Com isso e com seu encontro com Sulu como parte de um breve coma, Boimler encontra alguma paz interior, conciliando a futilidade da vida com o objetivo de vivê-la de verdade, o que não deixa de ser uma conclusão no estilo autoajuda, mas que funciona para o personagem.
Minhas dúvidas repousam no cliffhanger que vem em seguida, em que descobrimos que, na verdade, William Boimler apenas fingiu sua morte como parte de um plano para ele passar a fazer parte da misteriosa Seção 31, a divisão black ops da Frota Estelar. Digo que tenho dúvidas, pois já existe uma linha narrativa razoavelmente complexa que foi introduzida nesta temporada referente ao passado de Rutherford que, faltando apenas dois episódios para o fim, ainda não ganhou desenvolvimento. A introdução de uma segunda linha narrativa de contornos talvez ainda mais complicados a essa altura do campeonato me parece uma escolha estranha. Pode ser que os dois mistérios convirjam no final – diria que é o mais provável -, mas não sei se uma história dessa magnitude seria bem abordada apenas nesse final de temporada, pelo que, no mínimo, eu espero que fique algo para a já aprovada quarta temporada de Lower Decks.
No final das contas, Crisis Point 2: Paradoxus realmente não é um episódio tão bom quanto Crisis Point, mas ele oferece uma enorme variedade de assuntos, autocitações e referências em pouco tempo, usando o caos completo a seu favor e criando pontas para serem trabalhadas em um futuro bem próximo (espero). É, por assim dizer, um ótimo começo de fim de temporada.
Star Trek: Lower Decks – 3X08: Crisis Point 2: Paradoxus (EUA, 13 de outubro de 2022)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Michael Mullen
Roteiro: Ben Rodgers
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Paul Scheer, Alice Wetterlund
Duração: 28 min.