- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos demais episódios e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
É impressionante como Mike McMahan consegue empacotar tanta coisa em um episódio de meros 25 minutos de Lower Decks. Chega ao ponto de ser difícil acompanhar tudo o que ele quer passar com suas espertíssimas histórias que parecem ser a perfeita convergência de tudo o que é Star Trek. E Kayshon, His Eyes Open, título que quase que completamente desvia nossa atenção para um novo personagem, o tamariano Kayshon, que fala em metáforas intraduzíveis, mas que não é nem de longe o foco, simplesmente diz uma e uma coisa apenas a nós, espectadores da franquia: tudo que existe nesse vasto universo é perfeitamente conciliável e é estúpido – E S T Ú P I D O – bater no peito e descartar essa ou aquela série, esse ou aquele filme porque, na cabeça de certos alguéns, não consegue capturar o “espírito” do que Gene Roddenberry criou.
Aliás, eu não duvidaria que algum ávido detrator das duas séries mais recentes da franquia, Discovery e Picard, depois de assistir ao episódio, concluísse “espertamente” que o que o roteiro de Chris Kula quis dizer é que Star Trek “raiz” é o Star Trek clássico e, por clássico, leia-se tudo que não foi feito até o momento em que esse ávido detrator – que normalmente também é um “grande conhecedor”, assim mesmo, entre aspas, determinar que começou a “péssima, horrível, desonrosa” era moderna, seja lá o que isso signifique. Mas faz parte do jogo, já que as pessoas normalmente só enxergam o que querem e usar Kayshon, His Eyes Open como “prova” de posturas de nariz em pé defensoras da pureza de Star Trek é perfeitamente aceitável.
Mas é também errado, muito, mas muito errado. Na verdade, o episódio diz exatamente o oposto.
E comecemos por Mariner, pois ela protagoniza a parte do episódio mais fácil, por assim dizer. Nela, a Cerritos precisa ter certeza de que os itens da coleção de um colecionador falecido – acondicionados em uma nave – são seguros, com Mariner, Rutherford, Tendi e Jet, além de Kayshon, sendo enviados para este fim. O que se estabelece logo no início é um conflito de liderança entre Mariner e Jet, ela agindo sem pensar e de forma arrogante como sempre e ele sendo cuidadoso e evitando ao máximo arriscar a vida de seus colegas. Como não demora para a nave entrar em “modo automático de defesa” da coleção, o grupo tem que tentar se livrar do gigantesco problema e evitar ser transformado em objetos de coleção.
A dinâmica é perfeita, já que Mariner e Jet são exatos opostos que se atraem, mas não romanticamente, e sim na forma como acabam encontrando um caminho de tangenciamento. E cada um deles representa um tipo de faceta de comandante da franquia Star Trek. Mariner é muito mais um Capitão Kirk da vida, arriscando-se de peito aberto sem pensar duas vezes em seguir o caminho mais difícil e Jet é um Capitão Picard, que pensa duas vezes antes de agir e sempre tenta encontrar o caminho diplomático antes de entrar no meio da pancadaria. O fato de Mariner e Jet, ao final, se conciliarem, mostra que há espaço para todo tipo de Star Trek em Star Trek.
Mas é a história paralela de Boimler que realmente vai a fundo nessa lição. Já o havíamos visto desesperado, ao final do episódio anterior, em meio a um tiroteio espacial na ponte de comando da Titan, com Riker e sua tripulação se divertindo ao fundo. Sua linha narrativa em Kayshon, His Eyes Open parte exatamente desse ponto para deixar claro que o “corajosamente indo” do chavão startrekiano pode ter significados bem diferentes, algo que já havia sido abordado em Crisis Point. Para Boimler, é exploração, descoberta, diplomacia. Para a tripulação de Riker que vai com ele para um planeta de mineração como agentes infiltrados em uma missão perigosa, tudo o que interessa é a pancadaria incessante, é atirar primeiro e perguntar depois.
Quando, como resultado da ação, Boimler acaba criando um “clone de transporte” de si mesmo, como aconteceu com Riker em Second Chances, na sexta temporada de A Nova Geração, evento explicitamente citado por Boimler antes de acabar acontecendo de novo, vem a solução para o retorno do personagem para a Cerritos enquanto ele mesmo também ficam na Titan. Sim, ele mesmo. Não há que se falar aqui, em termos narrativos, sobre um clone. Para todos os fins, são dois Boimlers, um deles querendo a Cerritos e outro a Titan, um exploração e outro tiroteio sem fim. Novamente, há espaço para tudo em Star Trek e tudo pode ser Star Trek, sejam os episódios cerebrais e contemplativos passados integralmente em apenas um ambiente, sejam as séries com “um monte de personagens complexos jogados em batalhas fortemente serializadas que sempre acabam em uma reviravolta inacreditável que [faz o Boimler] questionar os fundamentos da realidade [dele]” como o próprio Boimler diz para Mariner e os demais já na Cerritos.
E o mais bacana é que não tem problema não gostar de um “tipo” de Star Trek. Faz parte do jogo, oras. O que é, como disse acima, absolutamente estúpido, é “negar” determinada série ou filme porque ela fez essa determinada pessoa “questionar os fundamentos de sua realidade”. Como diz o ditado, existe gosto para tudo. E mais, existe espaço para tudo e Star Trek é grande demais para ficar confinado a um livro de regras que um Jet da vida insiste em seguir. Pode ser até que o título do episódio seja uma frase sem sentido para brincar com a presença do tamariano no episódio, mas será que ele não quer dizer justamente isso, que se trata de um capítulo para abrir olhos… e mentes?
Star Trek: Lower Decks – 2X02: Kayshon, His Eyes Open (EUA, 19 de agosto de 2021)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Kim Arndt
Roteiro: Chris Kula
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Jonathan Frakes, Rich Fulcher, Carl Tart, Paul F. Tompkins, Marcus Henderson
Duração: 25 min.