Enquanto a Paramount fica enrolando no que diz respeito à franquia cinematográfica de Star Trek, com o cancelamento da versão de Quentin Tarantino e o recente anúncio da paralisação da versão de Noah Hawley, a CBS vem investindo pesado e de maneira bastante variada no lado televisivo. Primeiro foi a polêmica – aos puristas – Star Trek: Discovery, depois a nostálgica Star Trek: Picard, seguida do anúncio de um spin-off de Discovery focada no Capitão Pike (batizada de Strange New Worlds) e, finalmente, Star Trek: Lower Decks, a segunda animação da história da franquia (a primeira foi ao ar entre 1973 e 1974 e continuava a Série Original) e a primeira série de humor, com direito a Mike McMahan, produtor e roteirista de Rick and Morty, como showrunner.
A premissa é genialmente simples e, em poucas palavras, lida com os bastidores da Frota Estelar, tendo como protagonistas não almirantes, capitães, engenheiros, médicos ou outras pessoas com profissões glamourosas e fama de estrela de rock, mas sim “meros” tripulantes de suporte com funções burocráticas nos conveses inferiores (ou lower decks) de uma nave da Federação. Sim, senhoras e senhores, finalmente chegou a vez de olharmos – de maneira canônica, vale dizer – para os malfadados “camisas vermelhas”, personagens sem nome que existem apenas para fazer número e, claro, morrer.
E Second Contact, episódio inaugural, faz o necessário para apresentar os personagens principais, estabelecer a premissa, situar o espectador em um ambiente familiar, mas ao mesmo tempo pouco explorado e, claro, colocar as engrenagens funcionando para o que parece ser uma série com bom potencial. Sem perder tempo com enrolação, os fãs da franquia são logo brindados com pistas visuais que estabelecem a ação na U.S.S. Cerritos, especializada em “segundo contato”, ou seja, toda a parte literalmente chata e burocrática que segue o tão propalado e festejado “primeiro contato” com raças alienígenas até então desconhecidas. Nunca realmente pensamos nisso, mas essa ambientação e premissa fazem absoluto sentido e granulariza ainda mais esse já vastíssimo universo criado por Gene Roddenberry.
Com narração do cadete Brad Boimler (Jack Quaid, o Hughie de The Boys), os minutos iniciais lidam com introduções. Ele logo se coloca como um orgulhoso tripulante da nave que prima por fazer tudo seguindo as regras, inclusive fingindo que seu diário pessoal é um diário de Capitão. Em oposição a ele há a cadete Beckett Mariner (Tawny Newsome, a Angela de Space Force), safa, esperta e com muita experiência, além de filha da capitã da nave, mas jamais tendo conseguido subir na carreira justamente por se recusar a seguir as regras. D’Vana Tendi (Noël Wells), uma orion, é uma cadete da divisão médica recém chegada à Cerritos e que encara tudo com maravilhamento e olhos brilhando. Finalmente, fechando a quadra principal, há Sam Rutherford (Eugene Cordero), cadete que passou por um recente transplante cibernético, mais ou menos como Geordi La Forge, mas que ainda está se adaptando a ele, com frequentes bugs que atrapalham seu raciocínio.
Com boa interação entre eles, especialmente no que diz respeito ao constante conflito entre Boimler e Mariner, é muito fácil simpatizar com os personagens, com os designs jamais reinventando a roda e, portanto, mantendo a familiaridade em tudo que se refere à Federação, só soltando completamente os freios na ação que se passa no planeta do “segundo contato”, com porcos antropomórficos e uma hilária aranha gigante. A animação em si é ágil e dinâmica, com excelente detalhamento dos coadjuvantes e dos cenários e ações em segundo e terceiro planos. Mas o principal mesmo é que, mesmo com a estilização dos traços – algo bem diferente da Série Animada Clássica, que pendia para o realismo – o espectador definitivamente está em casa.
No entanto, o conforto de “estar em casa” tem seus revezes. O primeiro deles é que Second Contact, por muitas vezes, parece uma “caça às referências” feita para o fã da franquia apontar o dedo para a tela e usar seu conhecimento enciclopédico para identificar o que for identificável ao longo dos 26 minutos do episódio. Ainda que a familiaridade seja importante e a menção a alguns personagens e eventos funcione para situar temporalmente a série (para quem se importa com isso, claro, pois eu não dou a mínima), o roteiro inaugural abusa desse artifício, sacrificando um pouco a história como um todo. No entanto, isso pode ser apenas o “fator primeiro episódio”, normalmente mais afeito a esse tipo de jogada justamente para prender os espectadores, pelo que eu espero ver diálogos mais “soltos” dessas amarras e focados na série em si. O segundo é que talvez por receio de não enfurecer os mesmo fãs que esperam referências aos borbotões, Lower Decks segura no tom cômico, ficando constantemente engraçadinho, mas nunca hilário. Novamente, pode ser característica desse comecinho, pelo que teremos que esperar.
O que é realmente importante, porém, é que a série tenta realmente fazer algo diferente de verdade, oferecendo essa visão de bastidores sobre a vida dos “extras” dos filmes e outras séries de TV da franquia, o que certamente é uma abordagem alvissareira para uma criação já tão explorada ao longo das décadas. Fica a torcida para que Lower Decks acerte de vez seu tom e deslanche completamente, pois considero-me desde já fisgado pelas aventuras dos “tripulantes invisíveis” da U.S.S. Cerritos.
Star Trek: Lower Decks – 1X01: Second Contact (EUA, 06 de agosto de 2020)
Showrunner: Mike McMahan
Direção: Barry J. Kelly
Roteiro: Mike McMahan
Elenco (vozes originais): Tawny Newsome, Jack Quaid, Noël Wells, Eugene Cordero, Dawnn Lewis, Jerry O’Connell, Fred Tatasciore, Gillian Vigman, Paul Scheer
Duração: 26 min.