- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Era perfeitamente esperado que a quinta temporada de Star Trek: Discovery não dedicasse todos os seus episódios à “pista da semana” dentro da estrutura de caça ao tesouro escolhida pelos showrunners. Seria repetitivo e, em última análise, cansativo, por mais interessantes que pudessem ser os roteiros. Portanto, depois de três episódios nessa linha, chegamos a Face the Strange que usa um dos melhores tropos narrativos da ficção científica em geral e da franquia Star Trek em particular, ou seja, a viagem no tempo na variedade loop temporal, para colocar inicialmente Michael e Rayner e, depois, os dois com Stamets, em uma corrida para lidar com uma armadilha de L’ak e Moll, dois vilões que vêm se revelando especialmente astutos e engenhosos.
E tudo começa em um prelúdio que, invertendo a lógica do primeiro episódio da temporada, se passa 15 horas antes da cena final de Jinaal, em que vemos uma pequena aranha de “metal líquido” à la T-1000 sumir pela manga do uniforme de Adira e desaparecer. Com uso de violência premeditada, a dupla de caçadores de recompensa obtém a mercadoria preciosa e, então, a ação vem para o presente, em que a criaturinha que eu inocentemente achei que era um mero instrumento de espionagem, infiltra-se na sala de engenharia da USS Discovery e faz com que a nave fique presa em um loop temporal e também espacial em que a vemos em diversos momentos e lugares de sua história, indo tão para trás quanto sua construção e tão para frente quanto trinta anos no futuro, em que ela está abandonada e a Federação em frangalhos.
Os únicos que não são afetados por essa sofisticada estratégia, resquício da Guerra Temporal, são Michael e Rayner, por terem tentado se teletransportar no exato momento da ativação do “inseto do tempo”, e Stamets que, por ter tido seu DNA modificado pelo do tardígrado, permanece constantemente despregado no tempo, uma característica do personagem que, confesso, ou eu realmente não sabia ou tinha me esquecido completamente. O que segue, daí, é uma excelente variação do que vemos em tramas que usam o mesmo artifício, pois não só a trinca tem que aprender incrementalmente sobre o que está acontecendo e como fazer para reverter a situação a cada recomeço de loop, como, também, precisa lidar com as variadas situações pelas quais a Discovery passou pelo espaço-tempo, e isso sem revelarem-se no passado para não alterarem o futuro.
Entre divertidas tecnobaboseiras despejadas pelos diálogos em velocidade de dobra e um ritmo cada vez mais intenso em cada loop que mantém a curiosidade pelo episódio ao longo de cada um de seus minutos, há tempo de sobra para as verdadeiras intenções do roteiro para além de dar um respiro entre uma caça ao tesouro e outra e revisitar momentos importantes na história da série: lidar com a relação entre Michael e Rayner e fazer com que Rayner coloque em xeque sua posição mais distante da tripulação. Reconheço que é um tantinho (um tantão, na verdade) clichê e brega fazer o personagem durão amolecer ao longo de um episódio, entendendo que, às vezes, é importante quebrar a barreira hierárquica entre comandantes e subordinados, mas a grande verdade é que o roteiro de Sean Cochran cria ótimas situações para tornar tudo muito suave e “lógico” dentro da premissa estabelecida, algo que é amplificado pelo trabalho dramático de Callum Keith Rennie que literalmente traz sangue novo à Discovery e constrói um personagem que vemos lutar contra sua tradição e princípios ao longo de uma carreira sólida para compreender o novo ambiente em que se encontra e o valor da segunda chance que lhe foi dada por Michael.
Em outras palavras, o Rayner de Callum é um personagem irresistível, a fusão perfeita entre o veterano de nariz em pé, arraigado a seu jeito de ser, e o homem que tenta de coração mudar e se adaptar. Não é uma tarefa fácil na vida real, posso afirmar de cadeira, e, em um ambiente de vida ou morte como no episódio, a tendência é tudo ser mais acelerado, com naturais saídas convenientes que, porém, a direção de Lee Rose manipula da melhor maneira possível, usando muito bem o ator e suas interações com Sonequa Martin-Green, que já viveu Michael como ele vive Rayner, e Anthony Rapp, que faz seu Stamets sempre doce e facilmente atingido por palavras ásperas. E isso é essencial em um bottle episode como esse, em que pouquíssimos personagens são usados em um ambiente único ou, no caso específico, um ambiente único em momentos temporais diferentes. Se essa interação não funcionasse para além do artifício do loop temporal, tudo desmoronaria com rapidez.
Mas o melhor é que o passeio pela história da USS Discovery e da série funciona todas as vezes, seja quando vislumbramos Michael como o Anjo Vermelho guiando a nave para mil anos no futuro, seja quando vemos uma “luta de corredor” contras os reguladores da Corrente Esmeralda que coloca Jett Reno e Rayner lado a lado, ou quando vemos a devastação de mais 30 anos no futuro em que ouvimos Zora, solitária e quase delirante, lamentando o fim da tripulação e da Federação. Não sei se esse episódio foi filmado antes ou depois que a produção foi informada do fim da série na quinta temporada, mas ele funciona como uma perfeita rememoração da jornada até agora, com a cereja no bolo sendo, claro, o loop final que se passa alguma semanas depois que Michael passou a fazer parte da tripulação, o que leva ao esperado momento Michael vs Michael e, claro, a Michael do futuro emocionalmente convencendo seus colegas do passado – especialmente Airiam, com Hannah Cheesman retornando ao papel – a ajudá-la a sair da armadilha, algo que é ecoado pela forma como Rayner, na sala de engenharia, finalmente consegue usar a empatia para convencer Rhys e Michael da mesma coisa.
Face the Strange oferece uma pegada diferente e até mais sofisticada do que o padrão de loops temporais, conseguindo um resultado divertido, intenso e também emocionante em um “episódio de garrafa” que tem todo o jeito de pertencer à última temporada de série e que, ao mesmo tempo, funciona como intervalo na estrutura de caça ao tesouro estabelecida até aqui. Não se pode pedir muito mais de Star Trek, não é mesmo?
Star Trek: Discovery – 5X04: Face the Strange (EUA, 18 de abril de 2024)
Showrunners: Alex Kurtzman, Michelle Paradise
Direção: Lee Rose
Roteiro: Sean Cochran
Elenco: Sonequa Martin-Green, Doug Jones, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Wilson Cruz, Blu del Barrio, Callum Keith Rennie, David Ajala, Phumzile Sitole, Emily Coutts, Michael Chan, Annabelle Wallis, Tara Rosling, Tig Notaro, Eve Harlow, Elias Toufexis, Hannah Cheesman
Duração: 55 min.