- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Apesar de ser inegavelmente interessante o jogo político da presidente da ainda em reconstrução Federação de Planetas, Choose to Live tem um roteiro disperso demais para tornar esse elemento mais do que um pano de fundo que só aparece com mais força nos momentos finais, quando Michael percebe que a captura de J’Vini (Ayesha Mansur Gonsalves), uma Qowat Milat aparentemente renegada que passou a roubar dilítio, foi uma manobra de Laira Rillak para fazer com que os Ni’Var juntem-se à Federação. Ao tentar fazer muito, o roteiro de Terri Hughes Burton acaba criando linhas narrativas que concorrem pelo tempo de duração do episódio e que impedem que alguma se sobressaia ou seja tratada com a calma necessária.
A própria história principal do episódio, ou seja, a caçada à J’Vini parece corrida demais, com a chegada de Gabrielle, mãe de Michael, e também de T’Rina, depois que, na ação preambular, um capitão da Frota é assassinado por se recusar a entregar o dilítio. A missão conjunta de mãe e filha para descobrir a razão para as medidas radicais tomadas por J’Vini (e, vamos combinar, matar o capitão foi completamente desnecessário…) deveria ter sido o foco de maneira a realmente colocar o contexto das ações da Qowat Milat rebelde em primeiro plano e, quem sabe, trabalhar melhor a questão da espécie desconhecida que ela tenta salvar da extinção, algo que realmente empresta outra dimensão ao que ela tenta fazer, mas que sofre por uma sucessão de conveniências narrativas para economizar minutagem. Exemplos disso são, primeiro, a facilidade com que J’Vini é localizada, depois o estalar de dedos com que Tilly desliga o motor da nave-asteroide e, mais ainda, a velocidade vertiginosa com que Michael não só descobre o que aconteceu com a espécie em estase, como também a resolução mágica a que ela chega com um ou dois botões apertados em um painel completamente alienígena.
Ou seja, toda a urgência e todas as mortes que ocorreram para contar essa história foram esvaziadas por saídas fáceis e convenientes que transformam toda essa linha narrativa em um filler fraco que estaria talvez mais bem situado em algumas das séries mais antigas de Star Trek como mais um “caso da semana”. Pelo menos lá o foco teria sido provavelmente exclusivo e as saídas fáceis fariam parte da própria estrutura narrativa padrão. E não ajuda muito que a crise existencial de Tilly – que parece ter vindo do nada na temporada e não parece estar indo a lugar algum também – tenha sido costurada dentro da história, com o paralelismo das ações que vemos servirem de também convenientes comentários sobre o que ela quer da vida.
Na Discovery, o foco fica no drama nada dramático da ressuscitação de Gray Tal na forma de um androide que tem todas as características ruins de um ser biológico e nenhuma de um androide. Para começar, assim como no capítulo anterior, essa história me parece deslocada e com foco demasiado. Deslocada porque ela ocorre em meio a uma crise galáctica com a tal anomalia e com foco demasiado porque ninguém, mesmo alguém que tenha começado a ver séries de TV hoje, teve algum resquício de dúvida sobre o sucesso da empreitada. Não havia chance de a transição não ocorrer e não havia chance de o caminho de Gray Tal não ser “iluminado” pela força do amor de Adira Tal. Portanto, teria sido muito mais honesto que tudo tivesse sido tratado na forma de elipse, com um momento pré e outro pós a transição bem-sucedida, pois ver o processo todo pareceu-me uma forma de enrolar desnecessariamente a história.
Por outro lado, a continuada abordagem da dor de Book merece comenda. Teria sido muito fácil varrer esse assunto rapidamente para debaixo do tapete, mas a temporada parece querer dar o espaço merecido a David Ajala que novamente mostra toda a sua latitude dramática ao querer ser útil na investigação de Stamets sobre a anomalia, não só focando sua atenção nas pesquisas na Discovery, como também depois, em Ni’Var, mesmo sabendo que sua presença ali seria de enfeite dada a ciência envolvida. Aliás, a sequência na ex-Vulcan, apesar de carregada em CGI e tela verde, foi belíssima termos visuais, especialmente a impossivelmente alta e pouquíssimo prático “laboratório de meditação científica”, ou seja lá como aquilo se chama, pois a produção conseguiu criar uma ambientação propícia ao que viria em seguida, em termos contemplativos.
E o que veio foi a Fusão Mental de T’Rina e Book para descobrir se ele viu ou não o céu azul antes da destruição de seu planeta, o que seria sinal da presença de táquions, com a confirmação da hipótese de Stamets de uma singularidade primordial (novamente, um monte de tecno-baboseiras, mas que é padrão da série desde que ela foi criada). Tudo bem que T’Rina poderia ter começado por aí, mas é compreensível querer evitar que Book revivesse seu trágico passado recente e a forma como a fusão foi trabalhada, com Book interferindo diretamente nela e pedindo para permanecer por lá de forma que ele visse o irmão e o sobrinho mais uma vez foi muito bonita e muito bem executada, com um final extremamente satisfatório e catártico para o personagem. Não imagino que seu trauma seja novamente abordado com tanto foco a partir de agora, mas Choose to Live trouxe um desfecho excelente para esse ciclo.
No final das contas, o episódio foi dois terços filler (sendo que metade bom, mas corrido e metade fraco) e um terço na linha narrativa principal, mas mesmo este um terço sem trazer revelações maiores sobre a tal anomalia e, sinceramente, eu nem mesmo esperava que trouxesse tão cedo na temporada. Por outro lado, fico pensando até quando esse segredo poderá ser guardado sem que a temporada passe a ser uma sucessão de casos da semana que por vezes resvalam na solução do problema, pois não creio que a jornada de autodescoberta de Tilly ou a recorporificação de Gray Tal sejam interessantes o suficiente para manter a atenção do espectador por muito tempo.
Star Trek: Discovery – 4X03: Choose to Live (EUA, 02 de dezembro de 2021)
Showrunners: Alex Kurtzman, Michelle Paradise
Direção: Christopher J. Byrne
Roteiro: Terri Hughes Burton
Elenco: Sonequa Martin-Green, Doug Jones, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Wilson Cruz, David Ajala, Blu del Barrio, Ian Alexander, Emily Coutts, Oyin Oladejo, Patrick Kwok-Choon, Chelah Horsdal, Oded Fehr, Ronnie Rowe Jr., Ayesha Mansur Gonsalves
Duração: 50 min.