- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Independente de qualquer consideração – para mim irrelevante – do tipo “Discovery não é Star Trek” ou outras que gravitam nessa órbita que acho equivocada, há dois elementos que me fascinam na série: a capacidade que ela tem de se reinventar a cada temporada e o acompanhamento do crescimento de Michael Burnham na hierarquia da Frota Estelar. Na primeira temporada, tivemos basicamente uma prisioneira, de reputação destruída, tendo que se mostrar valorosa em meio à guerra contra os Klingons; na segunda, com Burnham já estabelecida como oficial de ciência, ganhamos uma viagem nostálgica pelos primórdios da Enterprise e, na terceira, já colocando a protagonista como segunda em comado, uma abordagem que arremessou o elenco principal a quase mil anos no futuro, lidando com uma Federação de Planetas quase inexistente em razão de uma tragédia envolvendo o dilítio, combustível essencial para o motor de dobra.
Kobayashi Maru continua essa tendência de reinvenção, agora com Burhham, depois de basicamente salvar o universo (de novo), finalmente como capitã da Discovery à frente dos esforços de reconstrução da Federação e da Frota Estelar, distribuindo dilítio aos mais diversos planetas. A sequência de abertura, em que ela e Book tentam reestabelecer contato amigável com um povo de design impressionante que usa borboletas para criar asas de borboleta que o permite voar, já dá o tom do episódio ao mesmo tempo em que serve de uma breve recapitulação do que é necessário saber e já adianta o dilema pessoal de Burnham que é deixado bem claro, mais para o final, por Laira Rillak (Chelah Horsdal), recém-empossada presidente da Federação.
E toda a ação que ocorre entre o frenético prólogo e o sincero diálogo entre as duas mulheres é uma perfeita – ou quase – ponte narrativa que nos leva de um lado ao outro do episódio sem percalços, de certa forma até mesmo evocando a abordagem mais tradicional da franquia, só que colocando em primeiro plano uma ótima discussão sobre o papel do capitão em uma nave dessas. Afinal, sempre aceitamos sem maiores consequências o fato de que os capitães das naves e bases da franquia sempre são os primeiros a mergulharem de cabeça na ação e, mais ainda sempre esperando resultados milagrosos. Em Kobayashi Maru isso é desafiado pela Presidente e com argumentos lógicos que parecem afetar profundamente Michael e que, espero, sirvam de trampolim para que a personagem ganhe o desenvolvimento que merece. Afinal, fui cuidadoso ao dizer, logo no início, que admiro o crescimento dela na hierarquia da Frota Estelar, mas sou o primeiro a admitir que a personagem me parece presa a um modelo imutável de heroína que é oito ou oitenta, ou seja, ou salva todo mundo, ou não salva ninguém, e sabemos que a segunda hipótese não é verdadeiramente uma hipótese.
Será interessante se a temporada usar a nova posição de Michael para estudar não só sua cadeira como também a personagem, em uma espécie de exame profundo do que significa comandar uma nave como a Discovery, com certeza algo que exige sacrifícios que precisam ser esperados e não só cenários perfeitos. E o melhor é que esse assunto é introduzido de maneira orgânica não só pela ação preambular, como também pela ação principal em que Burnham e sua tripulação precisam salvar uma estação espacial de reparos que saiu de sua órbita em razão de um misterioso e desastroso evento, com o roteiro abrindo ótimo espaço para que todo mundo tenha pelo menos alguns minutinhos de destaque e não só a capitã. E esse mesmo evento parece ter sido a razão da destruição de Kwejian, planeta-natal de Book, o que é particularmente doloroso considerando o quanto o planeta foi explorado na temporada anterior e como aqui, talvez um pouco sentimentalmente demais, ganhemos um momento com a família do personagem só para amplificar a dor da perda (presumindo que eles morreram, claro).
O que achei que não funcionou no episódio foi o quanto a trama paralela de Saru em seu planeta interrompeu a linha narrativa principal. Nada contra que o importante personagem tenha seu novo status quo explorado, mas a ação do lado de Burnham era muito mais premente e exigia foco único, sem interrupções para discussões para lá de expositivas sobre a vontade do ex-capitão em viver em dois mundos, seu planeta e também na Discovery, algo que é bem recebido e quase que magicamente ecoado por um inconsistentemente sábio Su’Kal. Além da quebra de fluidez, há também o iminente retorno de Saru à Discovery, algo que talvez pudesse ser adiado um pouco e não porque não gosto dele, já que, ao contrário, gosto muito, mas sim porque isso retira completamente o peso de sua decisão de se dedicar ao seu povo.
Kobayashi Maru é, provavelmente, o melhor começo de temporada de Discovery até agora, por saber combinar ação com uma discussão central sobre Michael que pode dar muitos frutos se ela não for esquecida, além de saber estabelecer uma ameaça aparentemente principal de peso e que mostra a que veio sem perder tempo. Só mesmo a história de Saru é que pareceu fora de esquadro, pelo que eu espero que ele seja logo reintegrado à Frota para que esses desvios sejam evitados, além de eu torcer para que o mistério sobre o que causou a destruição da estação espacial e de Kwejian não seja mantido assim tão misterioso por muito tempo.
Star Trek: Discovery – 4X01: Kobayashi Maru (EUA, 18 de novembro de 2021)
Showrunners: Alex Kurtzman, Michelle Paradise
Direção: Olatunde Osunsanmi
Roteiro: Michelle Paradise, Jenny Lumet, Alex Kurtzman
Elenco: Sonequa Martin-Green, Doug Jones, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Wilson Cruz, David Ajala, Blu del Barrio, Ian Alexander, Emily Coutts, Oyin Oladejo, Patrick Kwok-Choon, Chelah Horsdal, Oded Fehr
Duração: 52 min.