– Contém spoilers do episódio. Leia nossas críticas dos filmes e séries de Star Trek, aqui.
Mesmo levando em conta todas as reservas que alguém possa ter a respeito de seus detalhes, uma coisa é certa: Through the Valley of Shadows é uma entrada ambiciosa, inventiva e um tantinho insana para o cânone de Star Trek. Com o arco da temporada agora se arrastando por conveniências e pela força da mão pesada do roteirismo, a trama episódica da vez chega para salvar o dia com sequências sólidas para nossos personagens principais.
É nas minúcias da saga mais ampla do Anjo Vermelho que se encontram as maiores limitações da narrativa. Quem esperava que a sequência de revelações dos últimos episódios fosse nos encaminhar para uma reta final mais afunilada e com menos aspectos recortados do que o visto aqui ficou a ver navios. Os recém-introduzidos Cristais do Tempo se juntam aos Sete Sinais Vermelhos em uma dupla dinâmica de dispositivos de roteiro para garantir que os motores do arco amplo continuem a funcionar. A opção acaba não funcionando ao telegrafar o caráter de artificialidade de certos pontos do roteiro, e destoar do que se esperaria de uma exploração de ficção científica mais bem pensada para as temáticas de paradoxos temporais com a qual a produção decidiu se aventurar.
Com poucas linhas de diálogo somos informados de que Georgiou partiu em busca de “Leland”, e estabelecemos missões diversas para Michael (Sonequa Martin-Green) e Pike (Anson Mount), correndo com o pós-guerra do cataclísmico embate mais recente contra a IA maligna Control para colocar nossos personagens onde precisam estar no atual momento. Tanto o luto de Michael quanto a reação da Discovery são relativamente bem explorados nesse espaço curto de tempo, mas a impressão com que fiquei foi a de que faltou vermos um pouco mais da mobilização da Federação frente à crise, dada a magnitude da ameaça atual.
Revisitando o santuário de Boreth, que já apareceu anteriormente na franquia e fora apenas mencionado na atual temporada, temos a oportunidade para reencontrar o filho de Tyler (Shazad Latif) e L’Rell (Mary Chieffo), surpreendentemente envelhecido e agora servindo como guardião dos Cristais do Tempo. A inserção desse misterioso elemento continua a não me agradar muito pela extrema conveniência e pouca explicação com que são introduzidos em um cânone de regras já bastante estabelecido. Ou melhor dizendo: mesmo que se tratasse de uma série de exploração espacial totalmente nova, os itens já necessitariam de um pouco mais de explicação para tornarem-se críveis o suficiente dentro de uma ambientação sci-fi mais “realista” (como foi bem realizado, por exemplo, no caso do Motor de Esporos). O fato de estarmos em uma prequel de uma franquia cinquentenária onde eles jamais foram mencionados anteriormente só torna a coisa um pouquinho mais complicada.
Dado seu aspecto inerentemente “mágico”, a inserção dos Cristais no lore dos Klingon é uma escolha acertada em princípio. Há inclusive um charme da pulp fiction inegável e muito bem construído por toda a visita do Capitão Pike ao planeta: dos diálogos melodramáticos ao encontro com o inexplicável, a coisa funciona muito bem por si só, causando mais estranhamento apenas em contraste com a abordagem mais gritty que a própria produção buscou semear em outros momentos.
Deixando de lado as picuinhas nerds, o valor dramático da visita de Pike é o grande tesouro do episódio. Após o festival de referências de If Memory Serves e mediante as recentes acenadas ao tema via diálogo, parecia que visitar o acidente que deixou o primeiro capitão da USS Enterprise confinado a uma cadeira robótica parecia uma tentação inevitável para Discovery. Felizmente, o resultado saiu melhor do que qualquer encomenda possível: Mount consegue vender com precisão o misto de melodrama sessentista e terror fotorrealista que as cenas pediam. Tanto seu fatídico acidente quanto o encontro com seu futuro horripilante são muito bem montados, em mais um triunfo visual para a presente encarnação da série. Embora levemente apressado, o elemento dramático que faz com que a opção de levar o Cristal o responsabilize por concretizar seu próprio futuro tenebroso adiciona ainda mais uma camada de heroísmo para a azarada figura.
Enquanto o Capitão Pike continua a estrelar excelentes momentos como co-protagonista temporário da produção, nossa protagonista fixa não deixa de ser bem servida com uma subtrama igualmente empolgante. Explorando novamente a ótima química entre Burnham e o irmão adotivo Spock (Ethan Peck), a dupla parte em investigação de mais uma ocorrência “misteriosa” provavelmente ligada a Control, o que resulta em mais um combate direto contra nosso antagonista da temporada.
O twist aqui pode não ser tão surpreendente assim, mas é construído com cuidado o suficiente para nos entregar mais uma excelente sequência de ação, com direito a Spock não conseguindo se safar com o velho truque da pinçada de nervos e tendo que usar a outra técnica mortal pela qual também é conhecido: a ciência. A pareceria entre uma Michael emocionalmente descentrada e um Spock “à paisana” explora um lado diferente do usual para os personagens, e ajuda a dar o tom visceral que o momento pedia.
Through the Valley of Shadows é mais um episódio empolgante e divertido de Discovery, que funciona mesmo em meio a uma montagem de arco um tanto desajeitada. Já que optamos por fazer da coisa toda algo pessoal com Michael, é bom constatar que a produção tem conseguido trabalhar a ideia à altura, principalmente em termos dramáticos e fazendo bom uso da ação. Um maior cuidado com os detalhes poderia fazer do arco do Anjo Vermelho um verdadeiro clássico para a série – pelo menos por enquanto, vamos indo bem com momentos empolgantes, costurados meio que às pressas.
Star Trek: Discovery – 2X12: Through the Valley of Shadows (EUA, 4 de abril de 2019)
Direção: Douglas Aarniokoski
Roteiro: Bo Yeon Kim, Erika Lippoldt
Elenco: Sonequa Martin-Green, Doug Jones, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Anson Mount, Shazad Latif, Ethan Peck, Mary Chieffo, Mia Kirshner, Tig Notaro, Rachael Ancheril, Emily Coutts, Patrick Kwok-Choon, Oyin Oladejo, Ronnie Rowe, Sara Mitich
Duração: 48 min.