– Contém spoilers do episódio. Leia nossas críticas dos filmes e séries de Star Trek, aqui.
Se no episódio de abertura da temporada eu já tinha expressado curiosidade sobre o alto teor de fanservice da produção, o que dizer de If Memory Serves? Da colagem de abertura que gloriosamente resgata os eventos do piloto The Cage até o inevitável cumprimento vulcano da versão projetada de Spock (Ethan Peck) a bordo da nave de Leland (Alan Van Sprang), o episódio finalmente coloca um fim à busca interminável pelo vulcano meio-humano e dá andamentos empolgantes à trama central da temporada através de altas doses de referência a elementos familiares da série.
Trata-se de uma grande mudança de estratégia se comparada a uma primeira temporada em que Spock não era citado pelo nome, “Enterprise” foi uma palavra proibida até os minutos finais e o maiores ganchos narrativos com o lore estabelecido da franquia foram a presença pontual de personagens secundários como Mudd, Sarek e Amanda. Felizmente, a escolha tem rendido bons resultados. Com as diferentes frentes narrativas da temporada já solidamente estabelecidas, o mergulho nas auto-referências consegue ser bem dosado, aproveitando-se do significado de alguns elementos da mitologia de Trek para dar o devido contorno à efetiva estreia de Peck como a nova encarnação do Sr. Spock.
Desde a primeira vez em que assisti à primeira temporada da Série Original, o episódio duplo The Menagerie conquistou um lugar especial entre meus favoritos de toda a franquia. Repleto de surpresas e tensão inesperada em torno da conduta de Spock, o episódio não só nos mostrava pela primeira vez um lado totalmente desconhecido de nosso Primeiro Oficial, como também fez um uso engenhoso do material do piloto da série em uma narrativa sensacional, com toques involuntários de metalinguagem. Só assisti The Cage efetivamente muito tempo depois, e fui surpreendido pela qualidade do piloto, uma peça excelente de ficção científica televisiva em todos os aspectos.
Com essa contextualizada em mente, posso dizer que If Memory Serves consegue realizar um ótimo aproveitamento da bagagem narrativa da série — é daquelas histórias que trabalha com a continuidade, mas do que simplesmente jogar uma referência como referência para tentar fisgar alguma emoção extra por parte do público. Embora eu tenha gostado bastante da série, é difícil não concordar que Discovery tendeu a fazer mais da segunda coisa do que da primeira em suas aventuras “fanserviçais” desta atual temporada.
A viagem até Talos IV se revela uma excelente escolha para avançar a subtrama da insanidade de Spock. A temática da relação com a realidade nos limites da mente é muito bem retomada através de toda a trama, a começar do absoluto show visual que é a ilusão do buraco negro que serve como proteção ao planeta. A releitura do planeta é brilhante, oferecendo um visual cinematográfico que não distorce a simplicidade do original com firulas excessivas (leia-se: é uma bendita de uma pedreira alienígena, e temos que conviver com isso!). Vina (Melissa George), personagem central da trama clássica, retorna aqui em uma versão levemente mais horrorífica que complementa bem os ares arrepiantes dos visuais do planeta. Já os talosianos trazem um visual limpo e “plástico” demais — nesse quesito, ponto para os encéfalos pulsantes de 1965.
Com a ajuda dos cabeçudos, descobrimos que o surto de Spock se deve a uma reação em cadeia a partir de uma arriscada fusão mental com o Anjo Vermelho. Experienciando o tempo a partir de uma perspectiva de simultaneidade absoluta, a mente do meio-vulcano se vê roubada de um dos principais suportes do raciocínio lógico. A ideia é simples e efetiva, expurgando finalmente aquela impressão de que a loucura de Spock não passava de um artifício de roteiro para criar um MacGuffin e vertendo-a em uma exploração interessante da psique do personagem.
É a mesma diferença que há entre essas revelações e o aceno do episódio anterior a respeito dele ter sido diagnosticado com uma espécie de “dislexia vulcana”. Por si só, ainda que interessante, a revelação soou mais como o tradicional retcon motivado simplesmente pelo “fator de novidade” do que de um desenvolvimento mais cuidadoso das premissas do personagem. Já aqui a abordagem não apenas traz mais lastro narrativo como também é muito bem complementada pela abertura de outra das “caixas de mistério” que vínhamos arrastando desde o início da temporada: o tal do evento determinante que afastou os irmãos adotivos de forma aparentemente irreparável.
Sem grandes surpresas, o evento em si é algo totalmente dentro do que poderia ser deduzido já no primeiro episódio em que o mistério começou a ser cultivado. O teasing constante e explícito, como sempre, apenas trabalha no sentido de sabotar o momento dramático, já que potencialmente cria expectativas a respeito de algo totalmente inesperado, quando na verdade o desfecho da coisa já está implicitamente formulado nas entrelinhas. Por sorte, a realização da reencenação e a unidade temática forte do episódio conseguem salvá-lo desse destino, revertendo o que poderia ser um anti-clímax em um momento de excelente química dramática entre Michael e Spock.
Fechando um ciclo de exploração do personagem, vemos a forma como Spock acabou forçado a buscar o amparo na lógica pura, o que por sua vez ajuda a justificar seu desabamento mental a partir da fusão com o Anjo Vermelho. Buscar os talosianos como última alternativa de reparar sua mente fragmentada faz total sentido no esquema dessa trama maior. Além disso, justifica a exploração de um momento passado da cronologia ao estabelecer uma continuidade muito interessante entre The Cage e The Menagerie, construindo uma relação de confiança entre Spock e os telepatas que melhor o prepara para as ações a serem tomadas nos eventos da segunda história.
O mergulho de cabeça (que me perdoem os talosianos pela expressão) no personagem mais antigo e popular da franquia felizmente também não acaba sendo ocasião para esquecermos do restante da tripulação. A bordo da Discovery, vemos um desenvolvimento paralelo do Capitão Pike (Anson Mount), retomando sua história com Talos IV. O reencontro com Vina não deixa passar uma oportunidade de ouro de prestar tributo à primeirissima trama de Trek, explorando bem alguns dos ângulos do desafortunado capitão da Enterprise preterido na produção original. Mount continua a fazer um trabalho sensacional como o personagem, e o encontro com Spock consegue cimentar uma inserção orgânica e empolgante dos dois personagens na tripulação da Discovery.
Por falar em desafortunados e em unidade temática, cabe comentar ainda a subtrama envolvendo o revivido Dr. Culber (Wilson Cruz). Uma coleção de memórias sem conexão com as sensações do próprio corpo reconstituído, o personagem vive um momento obscuro e dramático muito bem interpretado por Cruz. Além de inserir mais uma trama interessantíssima de ficção científica na jogada, essa frente ainda garante momentos dramáticos para o sempre azarado Stamets (Anthony Rapp), que rapidamente vê o retorno de seu amado degenerar da utopia para mais um item em sua lista de desgraças pessoais.
Sem partilhar da linearidade e do caráter “pseudo auto-contido” da temporada inicial, Discovery começa a colher os frutos de uma trama de temporada que iniciou em uma crise identitária e que agora, felizmente, se encaminha para um desfecho promissor repleto de potencial em várias de suas frentes narrativas. If Memory Serves traz um equilíbrio excelente entre referências ao passado e desenvolvimento empolgante do aqui-e-agora.
P.S.: Deixei de falar das subtramas de Saru e do “espião interno” da nave, além do quiprocó divertido da Sessão 31, para não deixar a crítica ainda mais extensa… Ao invés de roubar seu tempo com isso, sugiro reassistir a The Cage no lugar — eu reassisti em preparação ao episódio, e achei sensacional, além de enriquecer a experiência!
Star Trek: Discovery – 2X08: If Memory Serves (EUA, 7 de março de 2019)
Direção: T. J. Scott
Roteiro: Dan Dworkin, Jay Beattie
Elenco: Sonequa Martin-Green, Doug Jones, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Wilson Cruz, Shazad Latif, Anson Mount, Michelle Yeoh, Ethan Peck, Alan Van Sprang, Rachael Ancheril, Dee Pelletier, Rob Brownstein, Alisen Down, Hannah Cheesman
Duração: 40 min.