– Contém spoilers do episódio. Leia nossas críticas dos filmes e séries de Star Trek, aqui.
Dando continuidade às transformações iniciadas em Brother, o episódio desta semana traz nossa tripulação novamente às voltas com as misteriosas manifestações vermelhas – eventos cósmicos de complexidade tamanha que levaram o Sr. Spock a pedir internação em um ambulatório psiquiátrico da Federação. A forma como a produção dá sequência à trama central da temporada se alinha perfeitamente com as tendências esboçadas no capítulo de estreia. Temos aqui uma narrativa que tanto em temática quanto em estrutura procura retomar traços essenciais das séries clássicas de Trek e colocá-las para funcionar no universo renovado de Discovery.
Seguindo o rastro de uma nova manifestação de um dos sete “clarões vermelhos”, a tripulação da Discovery se vê às voltas com um destino absolutamente distante. A única forma de cumprir o trajeto em tempo hábil (leia-se: dentro da expectativa de vida de boa parte da tripulação) seria tirando a poeira do velho motor de esporos, para a alegria do azarado Stamets (Anthony Rapp). Mais do que a praticidade absurda com que a geringonça é colocada para funcionar novamente, surpreende a rapidez com que a produção retoma o uso da tecnologia sem fazer grandes cerimônias, após realçar há pouco tempo sua presumida aposentadoria.
Porém, a reativação é mais do que bem justificada: o conceito do motor de esporos traz obviamente um enorme potencial para aventuras ao melhor estilo “exploração de fronteiras”, o qual acabou não podendo ser totalmente aproveitado em uma temporada inaugural que se ocupou largamente de tramas de guerra em espaço já mapeado. É justamente uma aventura exploratória no modelo “aonde nenhum homem jamais esteve” que compõe a subtrama central de New Eden, opção que funciona muito bem para encaminhar de forma concreta as premissas centrais da temporada.
O episódio constrói com precisão de detalhes uma das fórmulas mais tradicionais da franquia: um mistério intrigante, discussões e dificuldades relativas à primeira diretriz e o uso dos personagens como porta-vozes de comentários futuristas a respeito de questões éticas atuais. O ingrediente menos ortodoxo aqui é a evocação explícita de questões relativas à dicotomia “fé x ciência” no âmbito dos próprios membros da Frota Estelar.
Descobrindo um sinal de rádio em loop há 200 anos em um planeta totalmente inalcançável em relação à Terra, nossa tripulação é forçada a mandar uma equipe de infiltração à paisana para entrar em contato com os humanos que se encontram inexplicavelmente isolados ali. Essa fórmula clássica demonstra aqui porque funciona tão bem, mesmo deixando-se o valor nostálgico devidamente de lado. Elegendo três personagens como foco narrativo e costurando a inevitável exposição com interações pessoais desenvolvidas em um ritmo orgânico de exploração, o mundo de Terralysium consegue ser construído de forma fácil e empolgante.
Mais do que a verossimilhança do cenário, a produção enfatiza o charme quase lúdico da ficção especulativa que pontuou as tramas clássicas da Série Original de Trek, ainda que não encontre tempo em meio a seu ritmo acelerado para explorar suas ideias com o mesmo detalhismo. A bíblia montada a partir de uma colagem de várias escrituras diversas parece algo saído diretamente de episódios como The Omega Glory, ao mesmo tempo em que aborda em estilo inegavelmente roddenberryano uma questão que o autor raramente se propunha a abordar de forma direta: o estatuto das instituições religiosas no contexto da Federação. Temos inclusive uma rara nomeação de sete diferentes tradições terráqueas – costurando possivelmente um tema apocalíptico com as sete manifestações vermelhas e a subtrama intrigante do “anjo” cósmico. OK, estou intrigado!
O Capitão Christopher Pike (Anson Mount) continua a se provar uma ótima adição ao elenco, mantendo sua boa química com a Comandante Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), sempre de modo a explorar facetas diferentes de nossa protagonista. O par é bem utilizado para evocar não só a clássica problemática ética da Primeira Diretriz, como também (e mais surpreendentemente) a dicotomia entre fé e ciência. Se no primeiro dilema Pike adota uma postura formalista enquanto Burnham parece inclinada a apelar para o fator humano e “pensar fora da caixa”, no segundo as coisas de certa forma se invertem, com Pike adotando uma postura mais contemplativa e mística em relação aos eventos que levaram à criação da “colônia involuntária” de Terralysium – algo impensável a partir da criação vulcana de Michael.
No desenvolvimento da missão, ganha destaque a situação específica do “colono” Jacob (Andrew Moodie), descendente de uma família de cientistas responsável pela manutenção do sinal de socorro e sedento por respostas mais convincentes por parte da tripulação. Trata-se de outro ponto alto do episódio: a perspectiva humanizadora dá contornos mais concretos à questão ética, preparação que é bem aproveitada no desfecho da subtrama. A cena em que Jacob pergunta para Pike sobre a possibilidade de explorar o espaço e voar por entre as estrelas traz uma simplicidade bela e otimista. É o tipo de coisa que, mesmo que não tenha me feito falta na ótima temporada de estreia, acaba sendo uma adição bem-vinda para uma entrada da franquia, trabalhando sua visão otimista com mais sutileza e eficácia do que o que foi tentatdo em Will You Take My Hand?, por exemplo.
O capítulo flerta com a ideia de conceder um necessário tempo de tela e desenvolvimento de personagem aos elementos até então mais “decorativos” da tripulação, concedendo à Tenente Owosekun (Oyin Oladejo) provavelemente sua primeira aparição fora do cenário da ponte de comando. Infelizmente, fora poucos acenos para seu passado e a atuação direta em um único momento da missão, não temos muito mais sendo explorado da personagem.
A bordo da Disco, nossa subtrama secundária também não decepciona, oferecendo um necessário tempo de tela para Saru (Doug Jones) e mais para Tilly (Mary Wiseman) se ocupar para além de sequências de humor. Embora a ameaça de um cataclisma nuclear (totalmente insuspeito por parte de todos que se encontram na superfície do planeta) surja do nada e retorne para o limbo sem muita ligação com a trama principal, trata-se de uma ocasião muito bem aproveitada para explorar o trabalho em equipe e as soluções engenhosas características de Trek, com mais uma belissima gambiarra cósmica manobra extravagante adicionada aos feitos da nave.
Por sua vez, o plot twist envolvendo a revelação de que a curiosa oficial May (Bahia Watson) se tratava de uma aparição para Tilly aos moldes das recentes manifestações além-vida do Dr. Culber é intrigante e adiciona uma nova camada ao mistério principal, nos assegurando de que a trama da rede micélica felizmente ainda tem bastante lenha para se queimar.
Combinando uma fórmula clássica ainda pouco explorada pela atual encarnação da franquia com desenvolvimentos interessantes e bem compassados de sua narrativa mais alongada, New Eden é um passo certeiro em direção à renovação ensaiada na estreia desta segunda temporada. Independente dessa renovação ser necessária ou não, a abordagem tem conseguido aproveitar os pontos fortes da série e expandir suas possibilidades narrativas, não apenas com premissas bem escolhidas mas também com uma execução bastante acertada.
Star Trek: Discovery – 2X02: New Eden — EUA, 25 de janeiro de 2019
Direção: Jonathan Frakes
Roteiro: Akiva Goldsman, Sean Cochran
Elenco: Sonequa Martin-Green, Doug Jones, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Anson Mount, Sheila McCarthy, Andre Moodie, Bahia Watson, Emily Coutts, Patrick Kwok-Choon, Oyin Oladejo
Duração: 48 min.