Home TVEpisódio Crítica | Star Trek: Discovery – 1X10: Despite Yourself

Crítica | Star Trek: Discovery – 1X10: Despite Yourself

por Giba Hoffmann
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– Contém spoilers do episódio. Leiam nossas críticas dos filmes e séries de Star Trekaqui.

Dentre as reações que recebeu desde sua estreia, uma preocupação recorrente entre os espectadores de Star Trek: Discovery era o quão comprometida a nova versão televisiva seria em se manter fiel às raízes de Trek. Num primeiro momento, em termos narrativos, visuais e diretoriais, a série pareceu evocar mais fortemente a versão do recente reboot cinematográfico do que suas raízes seriais (efeito agudizado pelo contraste com a estreia quase simultânea da tributária The Orville), o que compreensivelmente gerou preocupações e críticas entre os mais puristas, e um entusiasmo cauteloso entre aqueles curiosos por investidas mais experimentais na franquia. Com potencial para aplacar as dúvidas dos ainda incrédulos, Despite Yourself inicia bem a segunda metade da temporada inaugural, retomando diversas das qualidades da primeira leva de episódios, demonstrando um bom equilibrio entre o novo e o antigo em termos tanto de forma quanto de conteúdo.

Voltando de um hiato que poderia ter sido um intervalo entre temporadas, a nova saga da USS Discovery deriva diretamente da batalha final contra a Nave dos Mortos klingon, no épico Into The Forest I GoAlém dos danos gravíssimos à saúde de Paul Stamets (Anthony Rapp), descobrimos agora outro preço cobrado pelo uso excessivo do motor de esporos: após um erro no salto, a nave se encontra em uma posição não determinável do espaço. É muito interessante como, entre as cenas finais do episódio anterior e as iniciais deste episódio, a produção tem sucesso em se transfigurar de uma história de guerra para uma trama de exploração, sem deixar cair nenhum fio narrativo no processo.

As sequências iniciais, com a nave flutuando em uma posição não identificável do espaço e tempo, resgatam com sucesso a sensação do inesperado absoluto das aventuras exploratórias típicas dos bons episódios de Star Trek. A tensão crescente na ponte de comando, intercalada com as investigações a respeito do que exatamente ocorreu, nos faz pensar em diversas possibilidades, em especial girando em torno de viagem temporal e universos paralelos. As várias pistas truncadas de Stamets, em seus surtos de esporo, já apontavam para algo do tipo. A série continua a ter sucesso em se usar das expectativas para construir enredos envolventes: é certo que, neste ponto, o espectador já se encontra pensando nas implicações que uma viagem temporal traria para o status da série.

Fazendo uso de todo seu potencial como ficção científica, vemos posto em cheque momentaneamente até mesmo o status da versão como prequel da Série Original, uma vez que o motor de esporos introduz essa possibilidade de romper as barreiras convencionais do espaço e tempo mais facilmente do que a dobra espacial ou o teletransporte (e sabemos o quanto eles são capazes de romper essas barreiras!). Pra quais destinos a Discovery estaria rumando agora? Os fãs mais atentos por pistas podem ter ficado com a pulga atrás da orelha já ao final de Choose Your Pain, com a imagética do espelho sendo utilizada para aludir às transformações misteriosas pelas quais Stamets vinha passando devido ao uso de seu corpo no mecanismo do motor de esporos. Algumas falas desconexas do azarado cientista também deram sinais de que uma linha do tempo paralela poderia dar as caras – e qual outra seria senão o Universo Espelho, estreado no icônico episódio Mirror, Mirror, da 2ª temporada da Série Original?

A prerrogativa empolga pela possibilidade de explorar esse conceito tão familiar, agora sob as lentes da identidade própria de Discovery. Como essa torturada tripulação, que até agora já se viu envolvida em situações pedregosas e com toda a violência da guerra, lidaria com essa situação-limite de estar “fora de casa” em uma realidade decididamente pessimista, no que se refere à Federação? Se sua versão “regular” já tende ao pragmatismo amoral, como diabos se comportaria um Gabriel Lorca (Jason Isaacs) de cavanhaque e saudação nazista? Embora infelizmente não tenhamos tido respostas para a segunda pergunta, pelo menos a primeira é bem atendida neste começo de aventura pelo Universo Espelho. A forma como a tripulação se inteira de sua situação atual já é bastante interessante, aproveitando o momento expositivo para acompanharmos em uma cena tensa o oficial de segurança Ash Tyler (Shazad Latif) lidando com os efeitos de seu transtorno de estresse pós-traumático ao manusear um delicado equipamento em uma shuttle. 

A partir daí, o episódio trabalha bem a inusitada situação da troca de universos, com uma boa mistura de drama, humor, ação e referências ao lore estabelecido a respeito do local. Uma de minhas reações momentâneas foi pensar se não era cedo demais para encontrarmos as contrapartes de nossa tripulação – afinal de contas os conhecemos apenas há 9 episódios (para efeitos comparativos, Mirror, Mirror foi o 33º episódio de Star Trek). Por outro lado, foram 9 episódios tão intensos, e com momentos de personagem tão bem construídos, que a impressão que se tem é de que os conhecemos – ao menos os mais centrais – já há mais tempo. Em todo caso, o roteiro astutamente evita lançar mão desses encontros já de cara, apresentando apenas vislumbres, via diálogo expositivo, de quem são algumas dessas contrapartes.

Retomando um tradicional efeito do barbarismo do Império Terrano, os oficiais de alta patente tendem a ser bastante jovens e inexperientes em qualquer coisa que não envolva esfaquear os seus superiores. Com isso, descobrimos que a capitã da ISS Discovery é ninguém menos que a versão espelhada de Silvia Tilly (Mary Wiseman), fato que é explorado com ótimas piadas, além de ser deixa para sabermos mais das inseguranças da atrapalhada oficial e sua relação conturbada com a mãe, a quem, num twist de psicanálise espacial,  sua versão assassina faz lembrar.

Saber que Michael Burnham (Sonequa Martin-Green) fora capitã da ISS Shenzhou, até ser dada como morta após entrar em combate contra o líder rebelde Lorca, também nos dá pistas de que a viagem pelo universo paralelo testará emocionalmente a oficial, que após as recentes provações na Batalha de Pahvo agora se vê na mais inesperada das situações: podendo se transportar novamente a bordo da Shenzhou (ainda que não a verdadeira). O encontro com o oficial Danby Connor (Sam Vartholomeos), visto pela última vez morrendo na trágica Batalha das Estrelas Binárias,  não tem nada de nostálgico e é emocionante num sentido diferente, com menos choro e abraços e mais luta de facas no elevador do que se poderia esperar.

É notável como a produção tem sucesso em equilibrar bem a tonalidade mais humorística com a seriedade e perigo real da situação. O plano de infiltração na Shenzhou e todo o processo de “disfarçar” a USS Discovery e seus tripulantes para que se tornem o mais semelhantes possível às suas contrapartes espelhadas são um tanto quanto absurdos, mas são bem construídos o suficiente para serem bastante divertidos, ao mesmo tempo em que fazem lembrar as ingeniosas soluções contidas nos episódios da Série Original. Ficamos curiosos à respeito dos rumos que a trama do Universo Espelhado irá tomar, como a identidade misteriosa do Imperador e a forma como a série poderá trabalhar uma analogia entre os Klingons do universo regular e os humanos do Império Terrano, já que já tivemos alguns paralelos explícitos entre suas motivações e princípios básicos.

Nesse sentido, temos ainda tempo para as subtramas envolvendo Ash e sua antiga captora L’Rell (Mary Chieffo). Que há algo de errado com Tyler, isso já estava bem claro pra mim desde sua primeira aparição (não suporto esse cara!). Começamos a ter mais respostas a partir do rápido embate entre ele e a prisioneira, onde mais uma vez temos um uso eficiente de uma perspectiva introspectiva, desta vez nos dando pistas da mente fragmentada do oficial de segurança. Descobrimos que seu estresse pós-traumático, no fim das contas, não é um caso tradicional, e envolve uma série de modificações que sofreu, numa espécie de conversão bizarra para se tornar um klingon. É possível que L’Rell tenha tentado transformá-lo em klingon, para que seus sentimentos por ele sejam mais aceitáveis? Em todo caso, desejo apenas o mal para este personagem, uma vez que ele nos roubou da presença do sempre paciente Dr. Culber (Wilson Cruz), no que será mais uma na coleção de tragédias pessoais para o pobre oficial Stamets. Em termos de enredo, a morte foi mais um desenvolvimento chocante em uma subtrama especialmente obscura para os padrões de Trek, e ocorre em um momento em que a cadeia de comando da Discovery se encontra um tanto quanto desorganizada.

Num misto de aventura, humor e drama, com toda a reverência ao passado da série sendo novamente bem utilizada como base para uma narrativa que se propõe como algo diferente do habitual, Despite Yourself inicia a segunda metade da temporada introduzindo a tripulação da Discovery em sua viagem mais inusitada até então. Balanceando bem o desenvolvimento de personagens e do enredo, a série continua a ter sucesso em costurar tramas episódicas com um arco maior, construindo enredos envolventes sem deixar de dar espaço para momentos intimistas onde conhecemos mais sobre nossa tripulação. Vida longa e próspera  ao império!

Star Trek: Discovery – 1X10: Despite Yourself — EUA, 7 de janeiro de 2018
Showrunners:
 Gretchen J. Berg, Aaron Harberts
Direção: Jonathan Frakes
Roteiro: Sean Cochran
Elenco: Sonequa Martin-Green,  Doug Jones, Shazad Latif, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Jason Isaacs, Patrick Kwok-Choon, Mary Chieffo, Emily Coutts, Sam Vartholomeos, Clare McConnell, Sara Mitich, Wilson Cruz
Duração: 48 min.

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