– Contém spoilers do episódio. Leiam nossas críticas dos filmes e séries de Star Trek, aqui.
Sei que vai ter fã queimando DVDs e Blu-Rays de Star Trek em rituais roddenberrianos mundo afora, mas confesso que estou me divertindo muito com as liberdades que os roteiristas de Discovery têm tomado com o tão “precioso” e “intocável” cânone deste universo. Afinal, ver uma versão do holodeck em uma nave da Federação 10 anos antes da Série Original, que simplesmente não tinha essa tecnologia, é como pegar o livro de regras de Star Trek (ué, você não tem um?) e colocá-lo no triturador de papeis.
Mas a verdade é que não é nada disso. Primeiro, esses fãs precisam sentar no chão e parar de hiperventilar respirando pela boca naqueles saquinhos marrons de pão. Depois, precisam lembrar que algo semelhante ao holodeck apareceu na Série Animada cuja canonicidade não é lá 100%, mas quebra um galho. E, ainda por cima, em Enterprise, que se passa bem antes de Discovery, estabeleceu-se que outras raças tinham a tecnologia já há tempos. Portanto, uma nave experimental como a comandada pelo sensacional Gabriel Lorca (já o elegi como o melhor capitão de qualquer série Star Trek – podem me xingar, mas vocês sabem que é a verdade incontestável…), que tem tecnologia de spore drive, precisa ser vista como um micro-universo dentro do universo maior, onde as regras podem sim ser dobradas, quebradas, rasgadas e jogadas no lixo.
Por último, como é minha primeira crítica da série, já que o Guilherme Coral foi passear com o Tardigrade pelas galáxias, vale também chamar atenção que os fãs precisam tentar entender que mudar é preciso. Star Trek precisava mudar ou morreria. Mais do mesmo simplesmente não iria funcionar. A nova aposta da CBS é de levar a série por caminhos não tentados antes e repetir o que veio antes – por melhor que tenha sido – seria um erro mortal. E não, Discovery não é exatamente uma série galgada na Linha Temporal Kelvin inagurada por J.J. Abrams. Pode ser até que os uniformes e os efeitos especiais lembrem os até agora três filmes dessa série cinematográfica, mas a grande verdade é que Discovery está muito mais próximo da complexidade e da linguagem visual do reboot de Battlestar Galactica, ironicamente muito inspirado em Star Trek, do que qualquer outra coisa. E olha, qualquer obra que almeje se parecer com o que Ronald D. Moore fez com a clássica e piegas série setentista, merece aplausos. Portanto, não vejo razão para alarme, só comemoração.
Com essa “pequena” introdução, os leitores já devem ter reparado que me sinto como o proverbial pinto no lixo a cada novo episódio da ousada aposta da CBS. Se tive dúvidas sobre ela em seus dois episódios inaugurais – um tantinho demais para o lado burocrático e do “mais do mesmo” – elas se dissiparam quase que imediatamente em Context is for Kings e minha admiração por esse caminho novo só vem crescendo, ainda que não seja cego a seus problemas aqui e ali. E, agora, com o anúncio da renovação para uma segunda temporada (que só deve sair em 2019, porém), já é possível respirar aliviado que Discovery terá tempo para se desenvolver e se solidificar como merece.
Lethe (Lete, em português, um dos rios do Hades da mitologia grega cuja água faz quem beber perder a memória – tematicamente perfeito para o episódio) começa no citado holodeck, deixando claro que Lorca não perde tempo em recrutar quem quer que ele ache capaz de assumir cargos importantes, ignorando completamente oficiais de carreira de sua própria nave. Ele trouxe Michael da prisão e da desgraça catapultando-a para nada menos do que oficial de ciência, e, agora, é a vez de Ash Tyler, que o ajudou a fugir da nave Klingon de L’Rell em Choose Your Pain e já é alçado a chefe de segurança, no lugar da finada Comandante Landry. Rápido demais? Certamente, mas Lorca é assim e essa decisão muito provavelmente lhe custará caro se Tyler for um espião infiltrado pelos Klingons no estilo Homeland, como ele efetivamente só pode ser. Mas a marca que fica é a da impulsividade e a da obsessão com a guerra que esse capitão demonstra em cada movimento, como se tudo para ele fosse um complexo jogo em que cada nova jogada precisa ser pensada com cuidado, ainda que sem demora.
Isso, aliás, é, talvez, o elemento mais fascinante do episódio, mais ainda do que o resgate metafísico de Sarek por Michael. A chegada da preocupada Almirante Katrina Cornwell depois que Lorca monta a operação de salvamento sem autorização da Frota Estrelar é a forma que o roteiro tem para explorar profundamente esse aspecto, ao mesmo tempo que iluminando um pouco mais o passado do capitão. Depois que descobrimos que ele sacrificou sua tripulação anterior inteira para impedir que fossem torturados pelos Klingons, sofrendo um problema nos olhos no processo, começamos a perceber de onde vem esse lado aguerrido de Lorca, algo que Cornwell tenta mostar que o está levando ao abismo.
É interessante como alguém de uma patente tão alta como Cornwell vem galgando mais espaço em Discovery, algo que acredito ser inédito nas séries da franquia, com almirantes normalmente sendo relegados a pontas aqui e ali, comumente via vídeo-chamadas. Portanto, sua inserção orgânica na narrativa merece comenda, assim como a forma como o roteiro muito inteligentemente lida com a relação amorosa passada (e presente) entre ela e Lorca e sua formação em psiquiatria (ou psicologia, não sei). Com isso, a personagem ganha uma dimensão merecida que, por sua vez, retroalimenta a própria construção de Lorca, que, assim, ganha mais camadas e ainda mais complexidade como um personagem manipulador e que sempre mostra aquilo que os outros querem ver e não necessariamente a verdade.
A sequência em que ele reage brutalmente ao carinho de Cornwell, com direito a phaser na cara da almirante é o único momento que, creio, ele age como seu verdadeiro “eu”, um homem brilhante, mas profundamente perturbado que realmente precisa de tratamento, mas que se recusa a sequer cogitar a hipótese. Cornwell, lógico, pesca isso imediatamente e é chocante quando ela diz, depois de Lorca tentar desarmá-la, que ela não consegue mais saber quem exatamente ele é, imediatamente revelando que o tirará do comando de sua nave. São momentos dramáticos bem construídos, adultos e anos-luz a frente de muito do que já foi visto em Star Trek. Como eu disse: evoluir para não morrer. E o melhor é que, aqui, evolução vem com qualidade e não com fogos de artifício apenas.
Resta, agora, saber se Lorca aproveitou apenas se aproveitou da oportunidade para livrar-se de Cornwell momentaneamente ou se, conforme desconfio, ele já sabia da armadilha Klingon ou, pior ainda, ajudou a armá-la. The plot thickens…
Do lado mais “Star Trek clássico” da história, vemos uma relação de colegas estabelecer-se entre Michael e Tilly, com bons momentos de corrida pela nave e preparação do café da manhã (o momento do sussurro “e coloca molho, por favor”, foi hilário!) para desanuviar a mente antes do mergulho na trama envolvendo o atentado a Sarek por um grupo radical terrorista vulcano que exige lógica pura e vê as ações do embaixador como traindo tais conceitos. Não só é uma ideia muito interessante – ainda que, digamos, forçada, pois onde está a lógica em atentados suicidas? – como ela é utilizada para explicar parte da “origem” de Michael e da fusão da alma (soul meld) de Sarek com ela lá atrás, para salvar sua vida depois de outro atentado.
É essa fusão, que é quase uma viagem lisérgica sessentista que muito facilmente poderia sair da mente de Roddenberry, que permite que Michael descubra que Sarek está em perigo e que leva Lorca à missão de resgate. Mas a narrativa fica ainda melhor quando brevemente vemos Stamets, ou seu doppelgänger, bem mais relaxado e até fazendo piadas, ajudando Michael e Tilly a recriar a fusão de forma tecnológica, o que inicia uma viagem que discute remorso, culpa e arrependimento de um lado a outro entre vulcano e humana-quase-vulcana.
O lado positivo do arco é que ele desenvolve a relação entre os dois e nos permite aprender mais detalhes sobre o passado de Michael, além de oficialmente introduzir a versão Discovery de Amanda, aqui vivida por Mia Kirshner. No entanto, por outro lado, por mais que saibamos que a CBS está disposta a sacudir o cânone, a produtora jamais teria coragem de matar Sarek, sob pena de ter seus executivos empalados e sua sede incendiada por fãs enfurecidos. Portanto, não há qualquer semblante de perigo para Sarek ou para Michael (por ser a protagonista), o que retira um pouco – ou completamente, diria – eventual tensão que o roteiro tenha tentado criar com o resgate.
Discovery é como o canto sombrio do universo Star Trek, algo refletido na iluminação mais discreta dos cenários – algo que é inserido organicamente na narrativa também pelo problema ocular de Lorca – e pelas cores frias somados a ambientes assépticos (estes clássicos das séries) que formam um conjunto “duro” como o capitão da nave científica que funciona como um literal caixa de experimentações sobre o que pode ou não ser feito dentro desse universo. No quesito de efeitos especiais, os showrunners Gretchen J. Berg e Aaron Harberts continuam a impressionar, trabalhando com CGI e efeitos práticos que não deixam muito a dever a muito longa cinematográfico, em uma demonstração que a CBS não pretende economizar para colocar sua série na crista da onda sci-fi da TV.
Lethe é mais um excelente exemplar dessa releitura de Star Trek para o mundo atual. Uma verdadeira lição de como ousar sem destruir e como se valer principalmente de roteiros bem construídos e boas atuações para construir um mini-universo próprio que o espectador pode relacionar-se quase imediatamente. A série está definitivamente indo onde ela nunca foi antes.
Star Trek: Discovery – 1X06: Lethe — EUA, 22 de outubro de 2017
Showrunners: Gretchen J. Berg, Aaron Harberts
Direção: Douglas Aarniokoski
Roteiro: Joe Menosky, Ted Sullivan
Elenco: Sonequa Martin-Green, Doug Jones, Shazad Latif, Anthony Rapp, Mary Wiseman, Jason Isaacs, Wilson Cruz, Rainn Wilson
Duração: 48 min.