Obs: Leia, aqui, as críticas dos demais filmes da franquia.
Abordar os anos de Academia da Frota Estelar de James T. Kirk é algo que se discute desde 1968, quando o próprio Gene Roddenberry circulou a ideia de um filme sobre o assunto. Com o cancelamento da Série Original em 1969, a questão só foi levantada novamente ao final dos anos 80, quando a premissa foi levada a sério como uma história narrada em um longo flashback das lembranças de um envelhecido McCoy. Novamente, porém, ela foi deixada de lado, abrindo caminho para Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida, o excelente filme de despedida da tripulação completa original da Enterprise. Anos se passaram e, depois do fracasso de Jornada nas Estrelas: Nêmesis e do cancelamento da última série televisiva, Jornada nas Estrelas: Enterprise, Star Trek: The Beginning foi escrito como um longa-metragem, mas jamais produzido. No entanto, a ideia – persistente como são as melhores – ficou.
Corta para 2006, logo após a separação da Viacom da CBS, e a ideia de reviver a franquia nos cinemas renasceu na Paramount. Roberto Orci e Alex Kurtzman, respectivamente criador e produtor da série Fringe e responsáveis por trazer Spo… digo, Leonard Nimoy de volta à ativa em grande estilo por lá, embarcaram no projeto e mergulharam de cabeça no conceito de um prelúdio contando os primeiros anos de Academia de Kirk, mas indo além, muito além.
O grande – enorme! – desafio era não enfurecer demais os fãs fervorosos de uma das mais importantes franquias sci-fi já criadas e ao mesmo tempo recomeçar tudo, seguindo a esteira da febre dos reboots que assolava e ainda assola Hollywood. E a solução encontrada pelos roteiristas é brilhante: o que vemos é uma realidade paralela, o que significa que tudo o que veio antes nas seis séries de TV e dez longas na velha e nova geração não é desdito e, ao mesmo tempo, ganha-se ampla liberdade para criar mitologia própria sem ficar amarrado ao que o “futuro” estabelece para Kirk, Spock, McCoy e demais personagens. O artifício, já usado pela dupla em Fringe, não só se encaixa perfeitamente nos conceitos da ficção científica, como permite uma narrativa moderna, mas sem se esquecer completamente do coração mais contemplativo e filosófico que faz de Jornada nas Estrelas o que ela é.
E o melhor é que Orci e Kurtzman tentam ao máximo fugir do didatismo – ainda que nem sempre consigam – e explicam suas teorias de maneira fluida dentro de um roteiro que começa há 17 anos, no momento do valente sacrifício de George Kirk (Chris Hemsworth) para salvar a tripulação – incluindo sua esposa grávida – da USS Kelvin de Nero (Eric Bana), um romulano ensandecido que surge de repente a partir de uma singularidade (ou um buraco negro, para usar a nomenclatura mais comum). Tudo é muito rápido e em elipses sucessivas a partir do nascimento do futuramente mítico James T. Kirk, vemos o rapaz crescer até atingir a maturidade e as feições de Chris Pine que, bêbado e azarando Uhura (Zoe Saldana) em um bar, apanha de cadetes da Academia até ser salvo pelo experiente Capitão Christopher Pike (Bruce Greenwood) que acaba convencendo o rapaz a alistar-se. Em acontecimentos paraleos, só que no planeta Vulcano, acompanhamos o crescimento de Spock (Zachary Quinto) como um pária por ser meio humano e o preconceito de seus pares que o leva a também alistar-se na Academia.
A partir daí, é uma sucessão de acontecimentos bem estruturados que eficientemente nos apresentam aos demais personagens clássicos – McCoy (Karl Urban), Chekov (Anton Yelchin), Sulu (John Cho) e Scotty (Simon Pegg) – que são jogados em uma frenética luta contra Nero, que volta para terminar sua missão original de vingança. É particularmente fascinante ver a maneira orgânica como cada um é colocado em seu posto sem exagerar em momentos expositivos ou origens para cada componente do grupo principal. Ninguém precisa saber dos detalhes da vida pregressa de Chekov ou Sulu para entender sua importância para a Enterprise e para a narrativa e, com isso, as peças do tabuleiro vão se encaixando sem solavancos em uma estrutura que funciona em sua circularidade e lógica dentro do que se estabelece desde o início.
Apenas um aspecto do roteiro é falho. Ele exige que acreditemos na enorme coincidência relacionada com o planeta para onde Kirk é enviado por um Spock enfurecido e quem ele acaba encontrando lá. Vejo, aqui, um atalho desagradável na narrativa, que prefere criar uma situação absurda (o simples banimento de Kirk da Enterprise já é de se levantar sobrancelhas) que exige demais da suspensão da descrença do espectador. A ruptura é grande, mas a revelação é tão satisfatória que é algo que podemos baixar a cabeça e fingir que não vimos, se formos benevolentes.
Com isso, uma nova geração de espectadores pode simplesmente sentar e relaxar diante da tela que Jornada nas Estrelas será reempacotada e reapresentada diante de seus olhos sem que haja necessidade de qualquer conhecimento prévio. Do outro lado do espectro, os fãs de carteirinha da série não ficarão órfãos e poderão também largar os calmantes e os e-mails com ameaças à Paramount e todos os envolvidos na produção, pois nada do que veio antes é alterado e muita coisa – muita mesmo – que caracteriza os personagens e todo o universo criado por Roddenberry estão presentes, enriquecendo a experiência de quem conhece. Desde o estado natal de Kirk, passando pelo Kolinahr, pela forma como Kirk vence o teste Kobayashi Maru, pela presença do capitão Pike (com direito inclusive à cadeira de rodas!) e até mesmo a espada de Sulu, tudo é resgatado do material clássico e respeitado ao extremo. Claro, sempre haverá os insatisfeitos, mas, para esses, só resta ignorar a nova linha temporal (batizada informalmente de Linha Temporal Kelvin, nome da nave que George Kirk comanda por 12 minutos e também do avô materno de J.J. Abrams, homenageado em todas as suas obras) e rever os filmes e as séries…
Aliás, Abrams, que no currículo de direção de longas, só tinha Missão Impossível 3, foi uma escolha arriscada para dar nova vida à franquia. Mas essa escolha acabou dando excelentes frutos, com um trabalho sólido, ainda que imperfeito do diretor. Talvez sua relativa inexperiência o tenha feito trabalhar de maneira a aglutinar de forma um tanto perdida diversas técnicas diretoriais, uma delas geradora de infindáveis brincadeiras internet à fora: o uso exagerado que faz de lens flares (quando a luz é direcionada para a câmera) para criar sua “atmosfera espacial”. Nos primeiros cinco ou dez minutos a técnica funciona, mas, depois, é só mesmo algo para irritar o espectador que precisa “esquecer” dela para realmente apreciar o filme. Mas Abrams, em sua experimentação, não para de movimentar a câmera, ora trabalhando sequências mais longas, ora mais curtas e confusas e por vezes fazendo uso do famigerado ângulo holandês, aquela “virada” de câmera que cria estranhamento ao espectador. Está tudo lá, muitas vezes em momentos pouco propícios e sempre em quantidade maior do que deveria.
No entanto, os valores de produção desse semi-reboot compensam os exageros de Abrams. Aliás, mais que compensam. O design de produção é magnífico tanto na recriação da icônica Enterprise, como na “fábrica” em Iowa e nos cenários em estúdio e figurinos. Vê-se esmero e, sobretudo, respeito ao que veio antes, em cada detalhe, como a cadeira de capitão, nos uniformes (inclusive na boa e velha brincadeira dos “camisas vermelhas”) e no cavernoso desenho do interior da enorme nave de Nero. E a computação gráfica não fica atrás, criando espetáculos visuais a cada minuto, valendo especial destaque o momento em que a Enterprise sai da velocidade da luz na órbita de Vulcano.
A escolha do elenco não poderia ser mais perfeita. Cada ator está perfeitamente dentro de seu papel ao mesmo tempo emprestando sua própria pegada ao respectivo personagem e canalizando suas contrapartidas clássicas. Dois nomes se destacam para mim: Zachary Quinto e Karl Urban. Quinto cria o seu Spock, muito mais “humano” que o de Leonard Nimoy, mas impressionantemente parecido em atitude e expressões faciais. A camada de serenidade vulcana esconde um jovem em ebulição que tenta mas não consegue esconder seus sentimentos logo debaixo da superfície. Sob o risco de ser chamado de herege, diria que Quinto faz um Spock mais fascinante do que Nimoy jamais fora.
Karl Urban está de fazer o queixo cair em sua interpretação de McCoy – ou Magro – conforme estabelecido por DeForest Kelley. É que Kelley sempre foi, para mim, o melhor ator da tripulação original e não havia como Urban superar o trabalho clássico. Sua escolha de literalmente incorporar Kelley é honrada e incrível em como ele consegue mimetizar cada trejeito, cada movimento corporal de sua versão de outra realidade. É como ver Kelley em tela novamente.
A cereja no bolo da nova versão de Jornada nas Estrelas é mesmo Michael Giacchino. Para começar, o ainda não tão conhecido compositor escreveu duas de suas melhores trilhas sonoras originais em 2009: Star Trek e Up – Altas Aventuras, um feito digno de John Williams. No entanto, enquanto Up era um filme original que não carrega nenhum tipo de expectativa em relação à trilha, Star Trek era o exato oposto. Não só o filme era o 11º longa da franquia, que também conta com nada menos do que seis séries de TV, como a música tema composta por Alexander Courage e rearranjada para o cinema por Jerry Goldsmith é uma das mais famosas da Sétima Arte, conhecida de uma forma ou de outra mesmo por quem nunca viu ou não gosta da franquia.
Mas mostrando ousadia, Giacchino arregaçou as mangas e não se fez de rogado ao compor música tema que não se baseia na original, mas que com cinco ou seis acordes logo no início do filme, já é possível notar que é especial. Especial e magnífica, diria, uma das melhores composições modernas para sci-fi dos últimos 15 ou 20 anos. E o compositor se esmera com variações de seu tema para manipular os sentimentos do espectador, além de criar leit motifs para cada um da dupla principal que se mescla ao temário do filme ao ponto de ganhar proximidade com a composição principal na medida em que Kirk e Spock também se aproximam. E é muito interessante ver como a composição tema encaixa-se com precisão no tema original de Courage, algo que pode ser testemunhado ao final do filme, durante os letreiros, quando as duas são usadas em sucessão sem qualquer solução de continuidade. Uma obra-prima moderna.
Star Trek é, no final das contas, uma muito bem-vinda lição de como fazer um reboot. Uma franquia cinquentenária foi trazida de volta à vida graças a um trabalho impressionante de Orci e Kurtzman e uma produção que acerta em todos os pontos mais importantes. Gene Roddenberry não viu sua ideia de 1968 ir ao ar, mas tenho certeza que ele aprovaria.
Star Trek (Star Trek, EUA/Alemanha – 2009)
Direção: J.J. Abrams
Roteiro: Roberto Orci, Alex Kurtzman (baseado em criação de Gene Roddenberry)
Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Karl Urban, Zoe Saldana, Simon Pegg, John Cho, Anton Yelchin, Leonard Nimoy, Eric Bana, Bruce Greenwood, Ben Cross, Winona Ryder, Chris Hemsworth, Jennifer Morrison, Rachel Nichols, Faran Tahir
Duração: 127 min.