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Crítica | Sr. & Sra. Smith – 1ª Temporada

Espiões como nós.

por Ritter Fan
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Apesar do que falam por aí, a principal base de Sr. & Sra. Smith não é o longa-metragem homônimo de 2005 estrelado por Brad Pitt e Angelina Jolie, mas sim uma série homônima de 1996, criada por Kerry Lenhart e John J. Sakmar e estrelada por Scott Bakula e Maria Bello que sequer chegou a ter uma temporada completa e que, na verdade, “roubou” o título de uma comédia de 1941 de ninguém menos do que Alfred Hitchcock, conhecida por aqui como Um Casal do Barulho. Portanto, expectativas do tipo “ah, que horror, a premissa do filme de 2005 foi deturpada” e coisas assim são só isso mesmo, expectativas vazias baseadas em desconhecimento geral, pois até mesmo o longa de Pitt e Jolie foi inspirado pela referida série noventista, “deturpando-a” também, se eu quiser ser irônico.

Na série de Bakula e Bello, o Sr. Smith trabalha para uma organização conhecida apenas como “A Fábrica” e, quando uma rival com codinome Sra. Smith envolve-se em um caso do Sr. Smith e acaba sendo demitida, os dois passam a trabalhar juntos, desenvolvendo uma conexão que vai além da profissional. Francesca Sloane e Donald Glover pegaram esse exato conceito de um casal de espiões que sabe que são espiões e acrescentaram apenas um elemento crucial aí sim retirado do filme de 2005, ou seja, eles começam essa vida já casados depois de passarem na entrevista virtual de emprego a que os dois se sujeitam, recebendo missões também virtualmente de alguém que eles apelidam de “OiOi” e executando-as na medida em que passam a ser também um casal de verdade, com um relacionamento amoroso cada vez mais sério. E a criação de Sloane e Glover funciona muito melhor tanto do que a série de 1996 quanto do que o filme de 2005, sendo, na verdade, uma das boas surpresas do começo de 2024 que também lembra, de certa forma, The Americans.

Para começo de conversa, há muito tempo não me deparava com um primeiro episódio de série tão interessante, tão intrigante e tão bem compassado sem que em momento algum o roteiro tenha que recorrer a papagaiadas básicas do gênero como pancadarias infindáveis e fogos de artifício exagerados para chamar atenção. Trata-se de um episódio que tem um preâmbulo realmente fascinante que, de certa forma, nos deixa entrever um possível futuro dos protagonistas, e que, depois, depende quase que exclusivamente de Donald Glover e Maya Erskine como o casal do título que funciona perfeitamente desde seus primeiros minutos, com os dois sendo entrevistados para o emprego e, depois, conhecendo a belíssima casa em que eles passam a morar em Nova York e, claro, se conhecendo, mas inicialmente estabelecendo regras de distanciamento profissional e, então, seguindo para sua primeira missão que é de uma simplicidade quase enervante, mas que chega a ser genial na forma como permite que conheçamos os trejeitos, as personalidades, as qualidades e os defeitos da dupla. Há mistério, há ótimos diálogos e há uma construção de tensão que Hiro Murai estabelece com sua direção minuciosa e realmente cinematográfica que tira todo o proveito da base narrativa e fisga o espectador justamente por não entregar aquilo que se espera de uma série que tem “espionagem” em sua sinopse.

Até porque, não se enganem, Sr. & Sra. Smith não é exatamente sobre espionagem. A espionagem, a ação e a pancadaria – isso tudo vem em boa quantidade e de maneiras variadas e muito divertidas, vale dizer – são apenas e tão somente o pano de fundo para o verdadeiro coração da série que é estudar a evolução do relacionamento de um casal. Não seria muito difícil fazer a transposição do casamento de John e Jane para o “mundo” real, pois os títulos dos episódios e suas temáticas centrais para além do “caso da semana” lidam de maneira até didática, mas não burramente didática, há uma diferença, com a vida a dois. Tirando o fato de que eles são artificialmente casados e só a partir do ponto em que passam a morar juntos eles começam a se conhecer, tudo o que ocorre são fases naturais de muitos relacionamentos mundo afora e é nisso que os roteiros se esmeram e Glover e Erskine mostram suas verves dramáticas. Sim, há humor, mas a série não é uma comédia e sim um drama em que o tom cômico faz parte do cotidiano normal dos protagonistas, como também faz na vida normal de qualquer um. Há ironia, sarcasmo, críticas socioeconômicas, humor ácido em diálogos espertos, vivos e relevantes que povoam a série de verossimilhança.

Até reconheço que, por vezes, as cenas carregadas de diálogos se perdem um pouco em sua minutagem, estendendo as trocas para mais tempo do que talvez devessem ter, mas a grande verdade é que, mesmo considerando o tal improvável pano de fundo de espionagem, tudo parece natural e, mais ainda, gostoso de se assistir. Erskine vive a líder natural, mais fria, mais distante, mas também mais esperta, mais controladora e mais consciente de tudo ao seu redor, inclusive e especialmente do relacionamento amoroso. Sua forma de humor mais distanciado, sem expressões faciais exageradas – o deadpan em inglês – contrasta com a pegada mais aberta e mais franca, por assim dizer, de Glover que vive seu Sr. Smith como um personagem mais bon vivant, mais relaxado e mais romântico, além de, claro, ser um “filhinho de mamãe” incorrigível (Beverly Glover, mãe na vida real de Donald, tem sua estreia como atriz aqui). Glover e Erskine funcionam bem separadamente, mas é no contraste em tela entre eles que as fagulhas dramáticas se tornam visíveis, como é o caso do sexto episódio em que os dois vão a sessões de terapia de casal.

Outra escolha que funciona muito bem na temporada, apesar de eu costumeiramente fugir de séries assim, é a estrutura de “missão da semana”. Aqui, esse artifício antiquado funciona essencialmente não porque as missões são variadas e divertidas – e elas são – mas sim porque elas estão a serviço da narrativa central sobre o “casamento” de Jane e John. Não é ação pela ação, daquele tipo que existe no vácuo, mas sim como instrumento quase que de natureza lúdica para desenvolver os personagens centrais. E, inteligentemente, como ótimos e bem pensados “enfeites de bolo”, a série refestela-se com participações especiais pontuais que começam com as de Alexander Skarsgård e Eiza González no tenso preâmbulo do primeiro episódio, passando por um suspeito Paul Dano e um hilário John Turturro, chegando talvez em seu ponto alto com Wagner Moura e Parker Posey como dois inacreditavelmente babacas John e Jane Smith, Ron Perlman como um mais do que rabugento alvo da dupla principal e Sarah Paulson como uma terapeuta irritante, tiradora de onda e cheia de maneirismos com suas mãos enquanto fala. Todas esses coadjuvantes são quase como os “amigos de uso único” mencionados por Tyler Durden em Clube da Luta, mas são escalações perfeitas em papeis cuidadosamente escritos para beneficiar a estrutura de missão da semana, tornando-as mais facilmente absorvíveis e aproveitáveis pelo espectador.

As sequências de ação não são exatamente verossimilhantes porque não conhecemos bem John e Jane Smith, que ora parecem saber tudo, ora não parecem saber nada, com planos que mais parecem literais “orelhadas”? Sim, certamente. Mas tenho para mim que, primeiro, há uma evolução da dupla, com diversas missões entre as missões que efetivamente vemos que emprestam um caráter de dilação temporal que permite aceitarmos que eles realmente estão “aprendendo no serviço” tendo como base inicial seus cargos anteriores em trabalhos que definitivamente eram mais do que ficar sentados atrás de uma escrivaninha escrevendo relatórios. Além disso e mais importante, essas sequências de ação não são o objetivo da série que é, como já disse, uma narrativa sobre o relacionamento amoroso entre duas pessoas. Com isso, eventual inverossimilhança fica em segundo, talvez terceiro plano. E, finalmente, diria que o que vemos acontecer diante de nossos olhos tem como pontos-de-vista os de John e Jane que não são lá muito confiáveis na maneira como eles encaram o mundo, pelo que existe um quê de narração não confiável ao longo de toda a temporada.

Sr. & Sra. Smith pega a premissa da série de 1996, polvilha um pouco do filme de 2005, mas resulta em algo próprio e muito superior às suas inspirações. Com Glover e Erskine arrasando em papeis muito bem escritos que focam em um drama identificável com humor esperto levemente salpicado e uma ilustre lista de coadjuvantes colorindo os episódios, a temporada inaugural consegue ser uma experiência boa demais para ser ignorada. Poucos (ou nenhum não é?) casamentos existem nas circunstâncias da série, mas, apesar disso, tudo o que o Sr. e a Sra. Smith passam no lado pessoal é mais real do que vemos em muita série ou filme por aí.

Sr. & Sra. Smith – 1ª Temporada (Mr. & Mrs. Smith – EUA, 02 de fevereiro de 2024)
Desenvolvimento: Francesca Sloane, Donald Glover (com base em série de 1996 criada por Kerry Lenhart e John J. Sakmar)
Direção: Hiro Murai, Karena Evans, Christian Sprenger, Amy Seimetz, Donald Glover
Roteiro: Francesca Sloane, Donald Glover, Yvonne Hana Yi, Adamma Ebo, Adanne Ebo, Carla Ching, Stephen Glover, Schuyler Pappas
Elenco: Donald Glover, Maya Erskine, Alexander Skarsgård, Eiza González, Paul Dano, John Turturro, Sharon Horgan, Billy Campbell, Sarah Paulson, Parker Posey, Úrsula Corberó, Wagner Moura, Ron Perlman, Michaela Coel, Beverly Glover
Duração: 398 min. (oito episódios)

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