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Crítica | Spider – Desafie Sua Mente

por Leonardo Campos
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Pode parecer tendencioso começar sempre uma reflexão sobre um filme de David Cronenberg sem analisar exatamente aspectos estéticos ou contextuais de sua produção, mas devo delinear que as ilações filosóficas se originam das próprias informações oriundas do cineasta quando entrevistado sobre o desenvolvimento de suas realizações sempre polêmicas e únicas dentro de uma cultura solapada pela mesmice. Até quando retoma os tópicos temáticos anteriores de sua extensa carreira, o diretor canadense reveste a abordagem com nova roupagem, como se o seu cinema, salvaguardadas as devidas proporções, fosse uma atualização de projeto de pesquisa acadêmico, sempre em reinterpretações a cada momento histórico de produção, distribuição e exibição. Spider – Desafie a Sua Mente não deixa a complexidade, a estranheza e a fuga do lugar comum das produções anteriores, sendo ainda um pouco mais hermético enquanto entretenimento para os seus espectadores. E será com Schopenhauer que o cineasta fará alguns elos filosóficos, tendo em vista debates sobre como forjamos a construção de nossas identidades.

O filósofo com ideias ainda influentes no contemporâneo inspirou muitos artistas ao longo da história cultural ocidental. Richard Wagner (ópera), Tolstoi (literatura russa), Machado de Assis (literatura brasileira), dentre outros, incluindo aí o cineasta David Cronenberg, inspiraram-se nas reflexões filosóficas sobre ser o mundo um lugar de vontade e representação, um texto publicado em 1818 como crítica ao universo de Kant. Em linhas gerais, a vontade é o motor que conduz as nossas vidas, a representação de um mundo que é puro fenômeno, numa aproximação ao pensamento oriental sobre o status de ilusão do mundo sensível, mascarado por uma realidade transcendente. Conhecido por seu pessimismo, Schopenhauer via nas artes a possibilidade de acesso a um momento de êxtase diante do suplício da vida, pois a existência representa uma fonte inesgotável de sofrimento. Salvaguardadas as devidas proporções, não é o que o cinema nos faz no contemporâneo? É por meio da angústia e da representação que Spider perfaz a caminhada de sua vida, incerta e complexa como os quatro volumes do clássico filosófico brevemente entrelaçado aqui para compreendermos as estratégias dramáticas de Cronenberg.

Como expôs Cronenberg numa das coletivas de imprensa sobre o filme, ler textos filosóficos o ajuda no nascimento de imagens para tecer os seus personagens. Diante do exposto, a construção da identidade precisa fazer alusões ao passado dos indivíduos que a buscam como forma de compreensão de suas existências. Sem nossas identidades, e sim, no plural, pois que vos escreve coaduna com a linha de pensamento cronenberguiana e com os filósofos que lhe servem de direcionamento, não somos nada além de pessoas incapazes de escrever a própria história. Como dito numa curiosa e eficiente comunicação oral num congresso que a memória agora não me permite recordar com tanta certeza, parece que estamos sempre em busca de aniquilar o Minotauro desta labiríntica jornada chamada memória. Assim, acompanhamos a jornada de Spider (Ralph Fiennes), um homem solitário que está de volta ao complexo de East End, após o internamento por longos anos numa instituição psiquiátrica.

Seu retorno é tomado pelo resgate de memórias que o deixam desnorteados. Não só o personagem, mas nos espectadores, mergulhados na atmosfera construída pela equipe de Cronenberg, em especial, a direção de fotografia de Peter Suschitzky, responsável pela captação de imagens por ângulos e enquadramentos peculiares, conectados com a visão de mundo nada tradicional de Spider, homem que fragmenta a sua história ao passo que depende das inconsistências da memória para a reconstrução do passado. Em sua concepção, algo que pode ser real ou construção, o encanador Bill Cleg (Gabriel Byrne), seu pai, teria matado a sua mãe para ficar com uma prostituta, algo que marcou para sempre a sua atordoada existência marcada por delírios, resmungos, rabiscos num caderno que registra por longos períodos os esquemas complexos de sua mente instável, mergulhada numa trama que se passa entre as décadas de 1960 e 1980, no bojo do proletariado britânico, um espaço geográfico que vai descortinar o lado Proust de Spider ao retomar a sua memória por odores e imagens peculiares.

Seu apelido, oriundo da mania em pendurar coisas com um barbante por todo o quarto, define um pouco da postura cíclica do personagem no desenvolvimento da trama. Ele vive no interior de suas nebulosas lembranças, constantemente amedrontado por conspirações inexistentes, numa condução de vida desapegada do passado, em especial, de sua traumática infância. Suas necessidades dramáticas são psicológicas, no entanto, Cronenberg e sua equipe transformam tudo num festival de imagens que ilustram com a estética rotineira do cineasta, isto é, a excelência na construção de situações audiovisuais, a jornada interna de Spider, o terreno da esquizofrenia física. Da nicotina em seus dedos aos momentos de obsessão olfativa, acompanhamos a travessia do protagonista pelo design de produção de Carol Spier, em especial, os cenários de Mariana Morris com os papeis de parede sujos e manchados, setores que também dependem da direção de arte de Lucy Richardson para funcionar tão bem. Howard Shore, mais uma vez, cumpre bem o seu papel com sua textura percussiva envolvente, mas sem expor um comportamento muito intrusivo nos desdobramentos dos conflitos.

Como exposto anteriormente, o protagonista de Ralph Fiennes reconstrói a sua identidade por meio de estratégias labirínticas, longe da compreensão didática, num jogo de imagens nebulosas que ficam numa espécie de entre-lugar do que é tido como real e do que pode ser a imaginação. A sua mãe, como veremos no desfecho, é a multiplicidade dentro de sua mente conturbada pelo excesso de representações. Ela se faz várias em apenas uma. É a mãe e a prostituta, fruto do desejo de Spider, postura de caráter pontual para uma análise psicanalítica de seus conflitos psicológicos enquanto personagem ficcional. Por falar em construção de personagem, Denise Cronenberg faz um trabalho excepcional no design de Spider na seara dos figurinos. Ela expõe os elementos internos desta figura que geme e se arrasta pela sociedade na profundidade do silêncio que atordoa. Em seu uso de três camisas ao mesmo tempo, os sapatos surrados e as demais peças de roupa idem, Spider circula pelas ruas e interior de sua casa como um enigma.

Ademais, ao assumir a tradução intersemiótica da história de Patrick McGrath, David Cronenberg entrega ao seu público 98 minutos de um protagonista com a vida tomada por rotineiras resoluções de quebra-cabeças. Spider é o homem que toma café diariamente no mesmo horário, combustível para seu cotidiano de flashbacks constantes e letargia na condução de seu dia tomado por marasmo e acontecimentos circulares, com pontos de diferenciação entre uma situação e outra. Desta vez, elementos do grotesco estão alijados do desenvolvimento narrativo, algo mais associado ao cinema do diretor na década de 1980. Isso não impede, no entanto, que haja uma cena envolvendo violência física e sêmen, fluído humano que se fez presente em produções anteriores do cineasta, mas que fique delineado, em perspectivas distintas. Na construção de Spider – Desafie a Sua Mente, Cronenberg demonstra mais uma vez o que já sabemos: o domínio da linguagem cinematográfica e a direção eficiente de se elenco, mesmo que seus filmes tenham pouco apelo e sejam mais herméticos, indisponíveis para a fruição de um público mais amplo, caso as nossas plateias contemporâneas fossem menos alienadas.

Spider – Desafie Sua Mente (Spider) — Canadá, 2002
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Bradley Hall, Gabriel Byrne, John Neville, Lynn Redgrave, Miranda Richardson, Ralph Fiennes
Duração: 98 min.

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