Todd McFarlane já era uma grande estrela na Marvel Comics principalmente em razão de seu trabalho com o Homem-Aranha quando ele decidiu, juntamente com outros sete artistas, criar a Image Comics em 1992, onde teria a propriedade sobre suas criações e a liberdade de fazer o que quiser. Foi um movimento arriscado. Afinal, ele estava deixando o certo pelo duvidoso, mas, com o chamado X-Odus, o mercado de quadrinhos mudaria para sempre, abrindo as portas para criatividade sem freios e novas editoras independentes inundando o mercado e fazendo frente às duas grandes.
E, de certa forma, o sucesso quase instantâneo da Image Comics deveu-se muito a Spawn, criação de McFarlane que foi a segunda publicação do novo selo, depois de Youngblood, de Rob Liefeld. O anti-herói demoníaco inspirado no lado sombrio do Batman foi, durante toda a década de 90, sinônimo de Image Comics ao ponto de, 25 anos depois, suas edições continuarem até hoje sendo publicadas e ainda com McFarlane no leme, já tendo ganhado uma série animada pela HBO e uma versão de cinema pela New Line Cinema além de vários rumores de uma nova adaptação cinematográfica que volta e meia pipocam por aí.
De fato, esse sucesso editorial é merecido e isso já fica evidente no breve arco inicial – Questões – composto das primeiras quatro edições da série. Como o nome deixa claro, McFarlane usa seu espaço não para responder perguntas, mas sim para fazê-las. Spawn já aparece uniformizado com seu marcante e inesquecível jeito “sadomasoquista mascarado com capa esvoaçante” e, aos poucos, na medida em que sua memória começa a voltar, vamos aprendendo, junto com ele, que, em outra vida, ele fora Al Simmons, um soldado negro das forças especiais que, ao morrer, fez um pacto com o demônio para que ele pudesse ver sua amada esposa, Wanda, mais uma vez. Mas, como todo pacto com o Coisa Ruim, ele foi enganado e volta não imediatamente, mas cinco anos depois de sua morte, com poderes (inclusive o de mudar sua fisionomia, só que para um homem branco e loiro, em uma sensacional jogada do roteiro), desmemoriado e todo deformado embaixo do uniforme. As peças do quebra-cabeças que são divulgadas neste arco são poucas, mas suficientes para que McFarlane estabeleça seu personagem como uma trágica figura em busca de sua própria identidade e de sua vida passada.
Com isso, pouco efetivamente acontece nesses quatro números em termos de ação no sentido clássico da palavra. Há muito mais contemplação do que pancadaria. Muito mais monólogos internos melancólicos e raivosos do que frases de efeito e chavões. É, de certa forma, um personagem shakespeariano em sua construção e em seu dilema e isso o torna irresistível e engajante, pois é muito fácil para o leitor mergulhar em sua psiquê e simpatizar com sua luta, com suas dúvidas morais e com o que ele teve que fazer por amor.
Além de Spawn, somos apresentados à carismática dupla de policiais Sam e Twitch que investiga uma série de assassinatos de mafiosos de Nova York mortos com o coração arrancado e, claro, o primeiro vilão do herói, o Violador, em suas duas formas: a do desbocado e sinistro palhaço gorducho e baixinho e a do demônio magricela com enormes mandíbulas. Os textos de McFarlane para o Violador são hilários e enervantes ao mesmo tempo, criando uma ótima interação com o sisudo e calado Spawn que não faz ideia quem exatamente foi e o que raios está acontecendo. O embate físico entre eles na última edição do arco é quase uma paródia das lutas de super-heróis contra super-vilões. Dois seres superpoderosos em um beco lançando raios e arrancando órgãos vitais e membros da maneira mais sanguinolenta e exagerada possível para satirizar embates da mesma natureza, mas normalmente higienizados, das grandes editoras. Aliás, sátira é outra forma inteligente que McFarlane usa para delinear seu trabalho, trabalhando a presença da mídia de forma semelhante ao que Frank Miller fez em O Cavaleiro das Trevas, com opiniões contrastantes sobre os eventos que vemos desenrolar diante de nossos olhos.
Diria, porém, que Spawn, pelo menos nesse seu início (mas essa tendência continuaria quase que como uma marca registrada dele) é forma sobre substância. A característica arte de McFarlane, que trabalha o lápis e o pincel, é estupenda na quantidade de detalhes, nos designs e nos detalhes de cada personagem não-humano e na fluidez de movimentos. A “capa viva” de Spawn é, por si só, algo que merece admiração dos leitores, com uma quase sobre-humana capacidade do artista de lidar com o contraste entre o claro e o escuro. E o mais interessante é que ele está apenas no começo aqui em Questões, com dezenas de outros personagens sendo apresentados em edições posteriores.
Seu único “ponto fraco” (assim entre aspas mesmo, pois é algo muito relativo) é o desenho de personagens humanos (e não, Spawn e Violador estão fora dessa categoria). Talvez com exceção de Sam e Twitch, que têm características interessantes, ainda que escravas de suas personalidades, os demais são sempre super-modelos com rostos fungíveis, cintura fina e contornos belíssimos. Não chega nem perto do tipo de arte fajuta de um Rob Liefeld da vida (que acha que sabe desenhar), mas é algo que não exatamente combina com o ar sombrio e trágico de sua narrativa. Com o tempo, justiça seja feita, McFarlane suaviza esse problema, ainda que ele nunca realmente desapareça por completo. No entanto, não é algo que atrapalhe o prazer que é observar os detalhes minuciosos do que ele coloca em suas páginas, várias delas duplas.
Spawn é o verdadeiro marco divisório entre as eras pré e pós-Image Comics. Foi o personagem que realmente mostrou a viabilidade de uma empreitada desse porte e carregou nos ombros a tarefa de fazer a editora sobreviver triunfalmente durante seus primeiros anos de tentativa-e-erro para achar seus alicerces hoje profundamente fincados na indústria de quadrinhos.
Spawn: Questões (Spawn: Questions, EUA – 1992)
Contendo: Spawn # 1 a #4
Roteiro: Todd McFarlane
Arte: Todd McFarlane
Cores: Steve Oliff, Reuben Rude
Letras: Tom Orzechowski
Editora original: Image Comics
Data original de publicação: maio a setembro de 1992
Editora no Brasil: Editora Abril
Data de publicação no Brasil: março a junho de 1996
Páginas: 25 por edição